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11.01.2011

Homenagem a um grande personagem da História Contemporânea Portuguesa, e um exemplo de como lidar com jornalismo medíocre

Ana Cunhal, entrevistada 5 anos após a morte dele.
Sem gaguejos nem verniz. Vale a pena ler quem não teve oportunidade. Cortesia do DN

Ana Cunhal só falou por duas vezes sobre o pai, ambas ao fim de cinco anos sobre a morte. Quem a conhece retrata-a como bastante rebelde. Após o funeral de Cunhal peregrinou pelos lugares onde o pai viveu, e rumou depois aos EUA.

Cinco anos após a morte do seu pai, como o definiria?
Um ser humano extraordinário e exemplar. Um homem que sacrificou tudo o que tinha ou podia ter tido para construir um mundo mais justo. Altruísta, honesto, íntegro, carinhoso...
Há cinco anos faria o mesmo retrato?
Claro. Porque seria diferente?
Porque um pai vivo causa-nos outra responsabilidade…
Ah, a tal coisa da responsabilidade. Estará a assumir que por ser filha de quem sou tive ou tenho de me comportar de uma certa maneira? O facto é que nunca aceitei esse tipo de "responsabilidade".
Qual a característica que mais apreciava no seu pai?Todas as suas faculdades humanas e intelectuais.
Alguma de que gostasse menos?Não.
Ele escondia muito a personalidade. Conheceu-o a 100%?O que acaba de afirmar é tão absurdo que se torna quase insultuoso. Como é que o simples facto de uma pessoa se defender contra bisbilhotices e indiscrições se traduz em "esconder a personalidade"? Há quem queira saber tudo, como se a vida privada dos outros fosse uma telenovela. O meu pai nunca escondeu a sua personalidade, o que fez foi não deixar certas pessoas meterem o nariz onde não eram chamadas. E teve muita razão. Eu faço a mesma coisa. E estou segura de que muita gente "normal" faz o mesmo.
Se pudesse retocar a biografia do seu pai em que situação o faria?O meu pai não era grande fã de biografias. Sempre se opôs a culto de personalidade ou qualquer outra forma de atenção desmedida. Compreendo-o bem.
Quando é que entendeu que crescia fora do seu país?Quer saber se eu sabia que era portuguesa? Sempre o soube.
Foi difícil crescer fora do país, ou era natural?Naturalíssimo.
Que memórias mais antigas tem dele?
 Férias na praia, partidas de xadrez, muita risota.
Para os portugueses, Cunhal parecia ser tudo menos capaz de fazer rir. Estão enganados?Essa "maior parte dos portugueses" nunca deve ter tido ocasião de ter uma conversa com ele. Porque os outros dirão o contrário.
Ele gostava de desenhar. Fez-lhe alguma história infantil?
Durante os meus anos de infância desenhou-me dezenas e dezenas de giríssimas caricaturas de gatos. Eram inventadas por ele e coloridas a lápis de cores de boa qualidade, daqueles que se diluem como aguarelas se lhes passarmos um pincel molhado por cima. O humor era fantástico, com gatos a patinar ou a tocarem guitarra numa banda de rock. Os gatos tinham uns olhos enormes, muitíssimo expressivos e bigodes a "abanar ao vento".
Ainda em criança, o seu pai separa-se da sua mãe. Foi difícil conviver com a sua ausência?"Presença" não é uma questão de geografia. "Ausência", tão-pouco.
Sentiu falta de ter um pai em casa?
 Casais separados, desde que o queiram, podem sempre inventar maneiras de estarem "presentes" para os filhos. Conheci bastantes filhos de casais que viviam juntos, dos quais o pai, mesmo vivendo em casa, estava muito mais "ausente" que o meu. O meu pai fazia tudo o que podia para estar "presente". Tudo reside na maneira de comunicar o amor que sentimos e em fazê-lo frequentemente. Coisa a que ele se dedicou a 200%.
Sentia o mesmo que os outros filhos de exilados políticos, ou ser filha de Cunhal dificultava ou facilitava o estar fora de Portugal?Não sei como é que os outros filhos de exilados se sentiam.
Ficou feliz por voltar a Portugal?Iria finalmente conhecer o resto da família e conhecer o meu país.
O que mais a marcou no regresso?O frenesim pós-25 de Abril. A minha obstinação em continuar a ser uma pessoa como qualquer outra, num ambiente tão politizado quanto excessivamente curioso e agitado.
Sentiu-se a viver outro exílio pelo protagonismo político do seu pai?Quem viveu em exílio foi o meu pai, não fui eu. Quanto a mim, apesar das circunstâncias fora do comum, tive uma infância que me pareceu perfeitamente normal.
A política interessou-a então?Durante muito pouco tempo, quando fui mordida pelo micróbio dos movimentos estudantis.
Foi fácil conviver com o papel do seu pai no início da revolução?Depende do que isso quer dizer.
Que queria implantar um regime comunista em Portugal.Eu tinha apenas 13 anos em 1974 e fazia o que uma criança daquela idade faz... E isso, obviamente, não inclui política.
Os vossos pensamentos políticos divergiam?Para mim, o meu pai sempre foi antes de mais nada o meu pai, mesmo tendo sido Álvaro Cunhal para o resto do mundo. As nossas conversas não eram debates políticos mas as típicas entre pai e filho.
Era difícil ser conhecida como a filha de Álvaro Cunhal?Tenho muito orgulho no meu pai. Nunca apreciei foi o facto de certas pessoas julgarem que tinham o direito ou o dever de me tratarem de uma forma diferente pelo simples facto de eu ser filha de quem sou.
Qual o livro dele de que mais gosta?A Arte, o Artista e a Sociedade. Um livro espantoso que aconselharia a qualquer apreciador de arte.
O seu pai gostava de pintar, mas a maior parte dos seus quadros são desconhecidos. Porquê?Porque era uma pessoa muito modesta, que pintava pelo gosto de pintar. Se calhar muita gente não sabe que, apesar da sua modéstia e de muitas reticências, acabou por autorizar a publicação de uma colecção de impressões dos seus quadros. Chama-se Projectos - Eu gostaria de saber pintar. Era o que ele costumava dizer: "Eu gostaria de saber pintar."
Tem algum quadro dele em casa?Duvido de que os leitores do DN se importem com o que tenho ou não em casa. Se é para se saber se me deixou os seus quadros, é evidente que sim. E revelo isto só para que não se duvide do seu amor de pai.
Porque foi viver para os EUA?Tem a certeza de que isto não é para uma revista social?!

entrevista no DN Gente online, do dia 12 de Junho.
http://dn.sapo.pt/gente/interior.aspx?content_id=1591061

8.14.2011

Vai para o trabalho (II)

Parte 3

I


Achamos que as massas foram vitimas de uma manipulação ideológica que aproveitou profundamente as nossas características biológicas e psicológicas que nos transformaram em fanáticos agressivos que reagem sempre contra a ideia da possibilidade de um outro mundo, que defendem o carácter sagrado do trabalho, como se este fosse um valor moral, norteador de sucesso e progresso.



A tal servidão é voluntária, tanto quanto é acarinhada.

Para as massas, fora dela, existe o caos, a anarquia, pois a civilização (dizem os ideólogos) só surgiu através do trabalho, e que quanto mais um indivíduo se consumir por completo em trabalho mais ‘longe’ irá a civilização.





Para quem está atento, assiste-se na análise da História a avanços e retrocessos constantes e regulares, no que concerne à evolução social da nossa espécie.

Cada vez mais e pela primeira vez na História, a Humanidade vai-se libertando através da técnica das condições materiais que a condicionavam, apenas para se autocondicionar de novo.



O progresso social retrocede para o sentido das primeiras populações que alimentavam a Inglaterra que assistiu aos primeiros engenhos a vapor.



A bóia que é lançada ao náufrago, ajuda como âncora, pois os milhões no desemprego assistem à inevitabilidade do desregulamento do código laboral, e de todos os avanços conseguidos previamente, tudo para aumentar a empregabilidade e revitalizar a economia, alinhando a mão de obra pelo nível dos desgraçados trabalham a troco de uma taça de arroz.





O cidadão vê-se assim, também, desprotegido laboralmente.

Como reage?



A sua reacção abrange 3 comportamentos mais comuns:



1) abnegação em trabalhar mais e dar o exemplo para que outros façam o mesmo;

2) assume uma identificação osmótica com o seu trabalho;

3) desenvolve uma coerção e hostilidade para com quem não quer ou não pode trabalhar.



O fundamentalismo do trabalho é propagandeado por todos os meios possíveis. As próprias pessoas, ébrias de uma superficial riqueza, não querem voltar atrás. Não querem estar impedidas de trocar de carro de quatro em quatro anos, querem continuar a ter toda a ‘liberdade’ para os consumíveis electrónicos da moda que são disponibilizados a conta gotas por meia dúzia de empresas que institucionalizaram a ‘obsolescência embutida’, que é tomada pelas massas como consequência do uso dos objectos.



Não querem abdicar da Playstation, ou pelo menos do seu progresso regular de versão em versão, mesmo quando dois terços do planeta passa fome, precisamente para que um terço possa ter acesso a estas riquezas superficiais.

O cidadão comum que sonha com um mundo melhor, sonha com playstations para toda a gente e para com a expansão deste universo alternativo a outros, a toda a gente.





A imaginação afogada por uma ideologia popular tecnocrata, não consegue vislumbrar propostas de solução a ter para com os problemas presentes, quanto mais para alternativas futuras. É preocupante quando a própria juventude não quer nem consegue imaginar um mundo futuro diferente.

É geralmente um sintoma característico da embriaguez.



O colapso do trabalho implica necessariamente o colapso da sociedade capitalista.

Não se constituiu até hoje um único movimento de massas, e até o movimento originado em Março, em Portugal, tinha menos que ver com uma reforma radical da sociedade que com uma justa reivindicação salarial de pessoas que se viram despojadas do reconhecimento social que esperavam obter com uma licenciatura.



As reacções existentes à crise, timidamente, (porque pura e simplesmente ninguém sabe o que fazer) lá pretendem uma regulação estatal da sociedade da mercadoria, mas não a sua abolição ou aniquilamento.

Tal ainda é visto como impossível.

Nem que se tenha de implementar uma administração autoritária da crise tal e qual um governo fantoche, implicando já uma concretização de política económica ultraliberal por parte do governo recentemente eleito (!), a partir de promessas de mais trabalho, coercivo e forçado, sob máscaras de impostos mais pesados, e aumento da carga horária sem compensação salarial.



O trabalho é o cadáver que domina os ventos da ‘globalização’ que traíram as suas melhores promessas e que não passam de aragens bafientas. Nunca como hoje a sustentabilidade ecológica do planeta esteve tão em perigo, nem se travaram tantas pequenas guerras, que no somatório de vítimas encoberto pelos meios de comunicação, se assemelham a grandes conflitos à escala global. Encobrem-se os levantamentos de povos como a Revolução Islandesa, e outros, pois tal não seria bom para as sociedades que defendem que isto é o progresso.



A capacidade ou incapacidade de vender a sua força de trabalho é o requisito perante o qual o ser humano se torna marginal ou supérfluo.



Quem não trabalha não come, é o mote moderno.



O trabalho e a sua ideologia dominante, determina os conceitos, os valores morais (quantas vezes não se ouve que fulano é boa pessoa, muito trabalhador, como se fosse isso um valor sobre o seu carácter) e os comportamentos dos indíviduos.

Mesmo os indigentes interiorizam que é melhor ter qualquer trabalho que não ter nenhum, e os que não conseguem nenhum, encontram justificada na sua culpa, a sua condição humana. Ou seja o pobre e o miserável são-no porque não arranjam emprego, assumindo-se o cidadão moderno como o epitáfio de todas as civilizações passadas humanas, é que sempre houve miséria, mas hoje em dia descobrimos que só existem miseráveis, porque não querem ou não podem trabalhar.

O miserável, portanto, merece a sua fortuna e miséria.



As limitações do trabalho, da sua necessidade na vida dos indivíduos e das comunidades que vivem dos serviços é essencialmente um problema subjectivo dos excluídos, de acordo com a natureza delirante da consciência contemporânea.





O trabalho tornou-se obsoleto. Anda-se apenas a moer a rosca, presentemente.



Os gestores, economistas, políticos incompetentes, perante a própria corrupção e ganância, exigem reivindicações exageradas, acusam de falta de disponibilidade e falta de flexibilidade como as causas para o estado desta casa onde não há pão nem razão, e onde todos ralham.



Agarremo-nos todos ao remo do sacrifício, e abnegadamente rememos, não interessa saber para onde, a saída só pode ser a remar, quem não o faz que morra, desde que não viva à nossa custa, fique para trás será castigado darwinianamente por isso.



É na coerção que o homem se torna lobo do homem, na coerção que uns indivíduos fazem sobre outros, generalizada e delirante, sob a batuta de umas pretensas leis do mercado.

O totalitarismo económico, para o qual os olhos das gerações futuras olharão com espanto, legisla bem, quem não se adapta e agarra com unhas e dentes a esta competição incondicional, será punido aos olhos da rentabilidade e deve ter pelo menos a necessidade de obliterar-se pelas próprias mãos para não ser um encargo para outros.



Perante o vazio de ideias, o abandono na abnegação do trabalho torna-se cada vez mais completo, rendido à imagem imediata da separação única dos males presentes, pela redenção que vem apenas pela entrega absoluta ao trabalho futuro.





8.08.2011

Vai para o trabalho



Parte 1
I
            A economia dos 25 anos a seguir ao fim da 2ª Guerra Mundial caracterizou-se por dois eixos paradigmáticos e operativos:
a)taxas de crescimento altas;
b)aumento do consumo de bens e de rendimento real.
Nos  anos 70, os países capitalistas que estavam viciados narcoticamente nas suas economias que por sua vez se estruturavam em torno destes eixos, começaram a ter dificuldade em acumular riqueza, especialmente através do que até ali havia sido o seu fundamento motriz, ou seja o poder do trabalho.

Existia um bloco comunista e uma aparente alternativa económica e ideológica ao capitalismo, que dava força aos trabalhadores por todo o mundo, incentivava uma boa organização dos sindicatos e ajudava a que os salários tivessem um grande valor, tudo subsumido num grande poder político por parte dos trabalhadores.

Este peso do trabalhador era, ou tornou-se um obstáculo às taxas de crescimento elevadas. A partir de certo momento todas as taxas de crescimento estabilizam e estagnam, com duas excepções muito visíveis :
a)      Nos países que já estão na miséria e cujo crescimento não pode ser negativo;
b)      Nos países que exportam muito. 
Ora para exportar muito é necessário ou  1)‘fidelizar’ a bem ou a mal a clientela, ou 2)ter mão de obra barata. Muito barata.
 Os países capitalistas nos anos 70 tiveram necessidade de abrir os mercados e aceder à mão de obra internacional de baixo custo. Se não o tivessem feito, teriam estagnado com a economia, estagnando o consumo de bens e serviços, e dos rendimentos reais. Também aqui se vê que a economia da globalização SÓ  funciona com diferenças na balança para produzir direcção no fluxo, ou seja, têm de existir miseráveis e vencedores.

A internacionalização dos mercados criou um enorme sistema financeiro, com a consequente deslocalização do capital onde quer que estivesse a mão de obra barata, e criou o problema do parcelamento dos salários/rendimentos.
 Baixando os salários e os rendimentos, baixa o poder de compra, logo, como se resolve o problema de uma economia que se baseia na obsessão de consumir, isto é, como vender mais produtos com baixo poder de compra?
Mais uma vez, esta economia esquizofrénica estava com problemas. E como sempre tem feito, arranjou paliativos imaginativos, a promessa de rendimentos futuros. Isto é, generalizou-se o acesso ao crédito.
A economia havia-se transformado numa economia de crédito.
O crédito e a fidelização foram as respostas encontradas para a manutenção do modelo económico e das elites que o controlam.

II

            Na guerra económica vale tudo. Para além de bem e de mal.
Num exemplo que nos é bem próximo, passou-se a ideia de que os oriundos do Sul europeu são uns madraços, uma espécie de sub-humanidade corrupta e desorganizada parte de uma periferia preguiçosa por contraste com um Norte, leia-se Alemanha, esforçada.
Isto é um mito.
Foi e continua a ser uma manobra de diversão que passa a mensagem de que a Alemanha é um exemplo a seguir na flexibilização neoliberal e na industrialização em grande escala, difícil e talvez sem bons resultados ecológicos e sociais numa Europa do Sul, com as suas diferenças culturais e geográficas.
O que poucos dizem é que a Alemanha congelou ordenados durante uma década, com o único objectivo de aumentar as suas exportações, o que conseguiu após o aumento dos ordenados nos outros países em anos consecutivos fazendo com que as suas economias perdessem competitividade, fidelizando-se assim a clientela, pelo preço baixo e pela obliteração da concorrência. Os direitos sociais e laborais na Europa unida, por parte dos alemães e de outros que adoptaram o mesmo modelo, foram ganhos em parte, à conta do desmantelamento de outras economias, leia-se o bem estar social que ainda subsiste, é à conta dos ‘parasitas’.

Atente-se que por fazer notar esta situação de todos conhecida, não é sinónimo de chamar ao trabalhador alemão, ‘parasita’ ou ‘madraço’. Trata-se de trazer um pouco de comparação ao exercício de pensamento que estamos a fazer.
Curiosamente em certos relatórios da OCDE, rapidamente esquecidos por opinion makers de blocos jornalísticos na hora da ceia, aparecem indicadores como a idade de reforma mais alta da Europa, ou menor número de dias de férias por ano, ou maior número de horas por ano gastas no local de trabalho, relativas aos trabalhadores portugueses.

O euro foi a ratoeira final, com ele, nele, já os países não podem desvalorizar moeda e a machadada final veio com a imposição das medidas…neoliberais por parte do Banco Central Europeu.
Este foi o caminho pelo qual pagámos portagem, desde uma economia de guerra que se recusou a recuar à normalidade da paz. Os caminhos foram a desvalorização dos trabalhadores e a transformação do trabalho abstracto em valor moral. Bem como a materialização e  imediatização da vida desses mesmos trabalhadores que devem orar no altar daquilo que lhes é apresentado como a Salvação.
Paga bem caro o trabalhador, por aquilo que ele próprio produz. Se não tiver dinheiro, hipoteca tempo de vida.

III

            Com o fim do bloco de Leste, caiu a única segurança ou contrapeso para a regulamentação laboral que os povos tinham. Não se julga aqui e agora os factores meritórios (ou não) desta organização económica ou política, mas apenas a sua instrumentalidade ou quanto muito a sua simples presença, como contrapeso ao sistema capitalista que se universalizava.
Já foi repetido à boca cheia que após o colapso planeado e levado a cabo do bloco de Leste, a única ideologia vencedora proliferou sem restrições até à situação presente, provando hoje, e mais uma vez, que o capitalismo tal como certa democracia, não é o remédio para todos os males, e pelo contrário, tem tanta ou mais necessidade de mecanismos de controlo e mitigação de efeitos, comparado com outros sistemas estruturais económicos e ideológicos.

Durante algum tempo foi bom. Parecia que o capitalismo se tinha libertado das suas próprias leis, e se havia libertado também das suas necessárias crises sistémicas.
Parece-me que com a queda do bloco de Leste emergiu um certo optimismo ou euforia em surdina crescente, sem localização ou fim aparente, que não uma celebração de vitória tanto quanto de celebração momentânea de fartura súbita.

Esta euforia decorrente do alívio de décadas de tensão acumulada através da Guerra Fria e do equilíbrio do medo, transformou-se rapidamente em infantilidade como aparece representada por exemplo no videoclip ‘Nikita’ de Elton John, com duas realidades exageradas porque demagógicas, de um lado um bloco de rigidez e autoritarismo incompreensível, e do outro uma leveza de borboleta e ostentação de drag queen, com um Rolls Royce vermelho, e indumentária do cantor excêntrica no formato e nas cores, com o objectivo claro de seduzir por uma ideologia, pela cor e leveza do mundo ocidental.



IV

            A ilusão de que o momento histórico estava alinhado e a marcha do progresso seria imparável até ao ignoto objectivo que se encontraria na meta.
A partir de certa altura, o rosto colorido e ligeiro do palhaço revela o osso por detrás da máscara, com a desindustrialização (apenas deslocalizada), desregulação neoliberal, com empresários e grupos económicos que pouco mais são que bandos organizados que propagandeiam esta ideia específica de progresso, para com isso permanecerem na linha da frente, mantendo o momentum no carrossel da propriedade e da influência, pagando com dedicação à causa, e recebendo o que lhes permite acesso aos meios  de luxo que os distinguem dos demais.

Diz o cidadão comum que a crise decorre dos gananciosos financeiros que emergiram destas sociedades ocidentais que caminham para a desregulamentação.
Regra geral esquece-se que a crise é de facto a crise de uma sociedade baseada no trabalho abstracto e na produção esquizofrénica de mercadorias.
Mas mesmo os vencedores dos mercados mundiais se vêem enterrados em vários níveis de miséria.
A força de trabalho perde poder e a deslocação fabril segue as rotas dos designados países ‘emergentes’ ou em ‘vias de desenvolvimento’ para onde as empresas têm de deslocar a produção sob pena de se verem suplantadas por rivais que disso se lembrem primeiro.

Ao cidadão comum cabe a parte dos fenómenos de exclusão social, desemprego, crédito como solução ao incentivo económico num aprofundar do drama da submissão excessiva, cabe também a imposição de salários miseráveis, desmantelamento de serviços estatais de acesso universal, sob a desculpa de que não dão lucro, ou só os privados gerem bem, e que são onerosos para o erário público.

V

Mas a brutal genialidade deste plano, está em algo que Étienne de La Boetie descreve no seu ‘Discurso sobre a Servidão Voluntária’ de 1571, referindo a alienação auto-inflingida por parte das massas, indivíduo a indivíduo, de discursos, de ruído continuamente vertido das pessoas para as pessoas, e por elas aceite de forma acrítica.
Poder-se-á afirmar que a alienação contemporânea nada mais é que a aceitação pela maioria de um sistema de coisas, uma mundividência, de uma visão sobre o mundo, onde genialmente se introduziu e instalou solidamente a crença de que nada há a fazer para mudar, e que o sistema embora com falhas, é o melhor que se pode arranjar.
A guerra passou-se no campo das ideias,  e venceu a ideia que nos materializa como adultos, emancipados e competentes para a liberdade e que o caminho para ela não é árduo.