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3.05.2013

Os académicos I



A ligação entre intelectuais e população em geral sempre foi fonte de perplexidade para quem se debruça sobre a cogitação sobre a dinâmica social.
Hegel no seu 'Fragmento de Sistema' alerta para uma necessidade de unir mitologia e razão para se obter uma adesão interina de 'coração' a uma racionalidade inclusiva.
Pese embora a interessante complexidade de tão altas considerações, o exemplo português constitui sempre uma espécie de excepção à regra que só a confirma.
Se no passado os intelectuais olhavam para a população no seu conservadorismo básico e titubeante com olhos benéficos que justificavam a estupidez e indigência com as condições materiais, hoje em dia penso não errar grosseiramente quando acho que os 'intelectuais' olham para a restante população como um filho bastardo emigrado olha para a família campónia.
O ressentimento grassa pois a classe mais esclarecida, não consegue modificar a classe corrupta que se apropriou do poder legitimada pela maioria da população.
Cada 'intelectual' acha que tem solução para os males do mundo, tanto como cada cidadão anónimo não letrado acha que é esperto o suficiente para saber como funciona o mundo e que só o engenheiro, o médico, o arquitecto sabem mais que ele.



A Universidade enquanto instituição é o melhor que temos, e a nossa única esperança enquanto sociedade. Representa um certo compromisso com o acto de se consagrar a vida à auto perfeição e à busca de respostas para o que quer que nos interroga.
É através do conhecimento do mundo que se pode partir para a sua transformação. É na Universidade que se produz e transmite ciência desinteressada,e só essa pode trazer promessas de liberdade à vida dos homens, pois os privados nunca irão lutar por uma liberdade que não seja convertida em divisa.
Como toda e qualquer instituição humana que implique hierarquia e longevidade no tempo, também a corrupção (ou cristalização nos dizeres de Hegel) fez evoluir a Universidade medieval para contextos distantes dos originais e bem afastados do que a academia professa. A escola pública tornou-se num gigantesco ATL e a Universidade portuguesa transformou-se numa fábrica de licenciados destinados a escritórios e fábricas.
Algures pelo meio deixámos de ser homens e mulheres.
A academia tornou-se hoje na salvação e em parte do problema, porque se por um lado precisamos de todos os portugueses a participar na produção de conhecimento que sirva para o bem comum, por outro lado a universidade é a instituição mais reaccionária da sociedade portuguesa.



Quem é o académico?
O académico nasce sem saber, por alturas do ensino secundário. Confrontado com uma corrida que parece entrar na recta final, o jovem e a jovem, começam a imaginar o que será um conceito de felicidade futura e realização profissional. O próprio 'superior' que aparece a seguir a 'ensino' dá a ideia de uma possibilidade de pertença a casta distinta, e eis que os jovens embarcam não na prossecução de uma jornada prazentosa, mas numa perseguição de carreira onde se podem encaixar numa sociedade que só recompensa quem para ela se sacrifica.
Assim evidenciam-se duas características dos académicos contemporâneos, a falta de humildade e a humilhante subserviência e adesão de 'coração' ao status quo, esboroando qualquer esperança que possamos ter em ver nos universitários os percutores de mudança social, falta-lhes imaginação e vontade, pois são formatados pela recompensa em forma de carros, casa, consideração social, e reconhecimento pelos pares, afinal, quem tem a segurança da conformidade não precisa de mais merda nenhuma.

Os jovens académicos portugueses são regra geral, pálidos reflexos de monges copistas medievais, desprovidos da adesão religiosa destes.
Apenas produzem o conhecimento científico necessário para obter reconhecimento, em particular dos que escolheram para 'pares', numa traição grosseira ao espírito polímata que deveria ser uma das fontes possíveis de alguma humildade. Raros são aqueles que não bocejam ou desvalorizam o campo de saber alheio, como forma de enaltecer o seu, e uma análise do funcionamento dos orgãos da função pública portuguesa poderia facultar verdadeiras novelas para comprovar esta opinião.
A psicóloga cospe sobre o filósofo, o engenheiro sobre o dramaturgo, o escritor sobre o arquitecto, e assim onde quer que se entre em competições sobre o carácter utilitarista de certs ocupações de corpo e espírito.



Mesmo as gerações mais novas até aos 40 anos vivem na dicotomia entre aquilo que observam, uma verdadeira fogueira de vaidades, medieval, senhorial, corporativista, que cinde e enfraquece a 'nação' e o sentimento de se ter atingido algo, uma posição, uma evolução, uma posição, uma evolução na vida, para um estado que merece reconhecimento respeito e notoriedade.
Todos entoam a bom som a indigência de Portugal, do meio académico, mas exigem que sejam tratados como professores, ou que os cheques tenham doutor ou doutora mesmo que o sujeito só seja licenciado.
Dá-se o caso caricato de se atrapalharem em plena aula com o importante detalhe se a pessoa a quem orientam a tese de mestrado é colega ou aluna, e eu assisti no processo de Bolonha a apresentações de orgulhosos estudantes de pomposos mestrados, que mais não eram que o 5º ano da licenciatura pré Bolonha.
A seriedade dada ao grau, como forma de enunciar a capacidade técnica ou científica é submersa ante a dignidade que se exige na forma de tratamento, aos demais.
Os departamentos universitários transbordam de doutores doutorzinhos mestres e mestrinhos em sintonia de reverência por títulos que só vejo exemplo comparável no mundo das artes marciais, com a pompa inscrita em cintos coloridos.

Cada chefe de aldeia tem o séquito, um microcosmos.
Dele depende financiamento para mais uns anos de vida dedicada à cópia inventiva, bem como da intrudução dos iniciados no complexo mundo dos especialistas.

O título, em Portugal nada tem que ver com uma opção de vida pela tarefa da instrução própria, tem a ver com a obtenção de posição social.
Tem a ver com o arquétipo da fidalguia como filho de alguém, por via directa como a cunha ou indirecta como o 'self made man ou woman' que se esforçaram por fazer parte do clube. Isto no sentido de que um licenciado é socialmente visto com olhos mais doces que o calceteiro que sendo trabalhador braçal não teve coitado cabeça para mais, para a hercúlea tarefa de acumular 180 créditos bolonheses.

Não interessa o que se sabe ou como se sabe, interessa fazer o que os outros fazem.
A população que paga o ensino superior quer dar o melhor aos filhos dando-lhes a hipóteses que nunca tiveram, de sair do lodo do trabalho mal remunerado, mal considerado, sujo, braçal repetitivo, contribuindo para o mesmo sistema discriminatório que em silêncio abominam.
Temos uma geração de infantes e ninfetas nas universidades portuguesas que vão prosseguir os estudos como forma de obter aceitação perante os pais e sociedade, mais que por gosto do que vão fazer, coisa que talvez nunca descubram.
Assim que se 'formam', pois até lá são 'deformados', tornam-se naquilo que estudaram, acérrimos defensores das suas vaidades pessoais ou vazios espirituais, que verdadeiros amantes do saber enquanto actividade humana.

Há a desconsideração latente e submersa entre áreas de saber, por critérios que variam ao longo do tempo e da empregabilidade, os de letras são uns tolinhos que estudam coisas que não servem para nada, e os dos números é que fazem coisas e são calculadoras ambulantes.
Entre instituições de áreas semelhantes há o preconceito sobre o grau de exigência de cada curso concorrente, ou a aplicabilidade ao 'mundo do trabalho'.


Portugal, como reconfirmei com um colega meu, é um país medieval cujas aldeias competem ainda nas feiras e nos arraiais. As figuras tutelares e místicas do padre, do morgadio e do doutor, estendeu-se a todos os planos sociais, aoinvés de se diluir a hierarquização.
A visão unívoca do mundo após a queda do comunismo criou outra zona de exclusão sujeita ao mercado.
Lembro ainda os muitos milhares de mulheres e alguns milhares de homens que correram aos cursos de letras para acederem a uma carreira docente segura, pois os cursos 'estavam a dar', e todos se queriam libertar não só dos trabalhos 'sujos' como aumentar a sua auto estima como 'senhor professor' ou stôra, mesmo que para isso não tivessem qualquer vocação, num paralelismo com o que se passa hoje em Medicina.

Portugal, falhou em tornar-se numa sociedade de conhecimento, permanecendo o que já era dando ares de ser outra coisa, uma sociedade da aparência e do privilégio.
Por mais ideias e teorias que os estrangeirados tragam para o torrão pátrio, de escandinávias ou canadás, tudo será corrompido pela mentalidade medieva portuguesa, e parece que a igualdade ou o equilíbrio só é possível de ser alcançado através da igualdade expressa em números nas folhas de vencimento. Só assim pode esta população construir os seus critérios de valor, o que já de si diz algo sobre esta população.
Os estrangeirados que crescem em número revelam verdadeiro amargor, através das redes sociais, sobre o lodaçal bafiento que Portugal efectivamente é.
Mas como é normal, fazem parte do problema e não da solução. Mas compreende-se o seu amargor.
O asco pelo povo comum, pela maioria da população emerge pela traição contínua deste povo a si mesmo, conjunto de indivíduos básicos e limitados com orgulho nas suas limitações, indigentes orgulhosos e convictos nas virtudes cívicas e no apreço pelo semelhante que varia de acordo com a arrogância desse mesmo semelhante em convencer da sua superioridade.
É portanto natural esta sobranceria que caracterisa o atavismo de uma população de gralhas e pavões dedicados ao culto da aparência pois é a aparência que mais facilidades práticas dá nesta sociedade que construímos.

Somos um povo de triste gente da qual eu faço parte.