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8.05.2012

A sacralidade do esforço I

Com estes episódios da participação olímpica portuguesa no ano da nossa graça de 2012, e da nulidade de conquistas da nossa comitiva, paira uma interrogação em surdina.




Estaria à espera o português médio, que alguma medalha de reconhecimento externo viesse dar alguma consolação ao peso miserável que sente em ser português no início do século XXI?

A geração suburbana domesticada, envernizada e efeminada que nasceu e cresceu à sombra de uma burguesia de escritório adolescente nos anos 80, adulta nos 90 e senil nos 2000, plenamente integrada na Europa e no quer que seja o ‘projecto Europeu’ -(que passa pelas viagens low cost quando as pontes e feriados permitem ir a Londres tirar fotos para o Facebook ou a Paris assistir a um concerto de artistas que tanto mais valem quanto mais alternativos e difíceis de enquadrar forem, claro está para mostrar aos outros que somos modernos, europeus…)-esta geração espera ser enaltecida através da fraca e esquálida, distorcida imagem de Portugal que acarinham desde a EXPO 98, o Portugal dos campeonatos da Europa e do Mundo de futebol, dos jogos olímpicos, ou dos serôdios e idiotas anúncios de turismo papagueados pelos meios oficiais e com voz off em inglês que se mostram lá fora e cá dentro quando os hoteleiros do Algarve começam a ver que os turistas pés descalços arranjaram uns trocos por melhores pousios…para longe do produto turístico da paisagem e do sorriso.



Não discutindo o carácter inquinado, para não dizer corrupto, que caracteriza hodiernamente os Jogos Olímpicos, verdadeiro campo de batalha ritualizada e fogueira de vaidades, torna-se muito interessante perceber a argumentação do português médio, acerca dos apoios dados ao atleta olímpico. Percebendo os argumentos utilizados, percebe-se o que se passa na sua cabeça, como vê o mundo, e isso não é resultado que se menospreze.



O que se ouve nos cafés, é que só devem ser apoiados os atletas que trouxerem medalhas ou os que ‘derem o litro’.

Ouve-se também que não devem ser apoiados porque fazem vidas faustosas de vida fácil à custa do erário público, e que ‘se eu tive de trabalhar desde os 14 anos e não me fez mal nenhum, eles que verguem a mola e se querem fazer desporto o façam nos tempos livres’. Os cafés nacionais são pródigos locais de recolha para quem quer apanhar pérolas argumentativas deste género.

Também se encontram os defensores, os mais incisivos dos quais são os próprios atletas. Que não é fácil ser atleta de alta competição, exige um esforço tremendo, que as compensações não são diferentes, e mais sabe-se lá o que.

E é verdade.

Mas não o é só para os atletas…que dizer dos pintores, bailarinos, músicos, escritores e toda essa corja que aguarda sedenta e com dentes vampíricos, a possibilidade de arrefinfar as dentuças na tenra carne dos impostos cedidos pela população para usufruto e consolidação do bem comum? Corja de marialvas que querem viver no bem bom à conta do mexilhão…



O importante para mim não é saber se devem retirar dinheiros públicos para comparticipar o que quer que seja que acham que enaltece o meu país.

E qualquer atleta português enaltece o seu país.

E por isso merece todo o seu apoio.

Para mim o importante, é pensar na questão de princípio por detrás do vil metal.

Um país que contribui para o seu próprio enaltecimento é como uma mulher que se embeleza, sem fim prático em vista que não o de ficar mais bonita ainda. Demonstra para si mesma afectuosamente o seu amor próprio.



É interessante pensar que um bom calceteiro também enaltece o seu país.

Que se calhar muito calceteiro que nega subsídio ao atleta, o faz em parte porque um espinhozinho lá bem fundo escondido no seu sentimento de dignidade lhe lembra que não lhe dão o devido valor.

Porque não é também o calceteiro apoiado?

Porque não existem olimpíadas da construção civil?

Ou simplesmente porque existem actividades humanas que os humanos valorizam mais?

Se é certo que demoram anos a desenvolver uma atleta como a Telma Monteiro ou o Nuno Delgado, anos para aparecer uma Rosa Mota ou Carlos Lopes, também não deixa de ser verdade que um bom calceteiro também exige anos de actividade.

O Nuno Delgado ver-se-ia aflito a calcetar o mais minúsculo passeio, e o Phelps exclamaria ‘Damn!’ se lhe pedissem para calcetar vinte metros de calçada à portuguesa à meia esquadria com losangos em basalto, tal e qual como qualquer iniciante de calceteiro, e como os primos, os trolhas ou pedreiros.

Poder-se-à dizer que uns vão além dos limites da resistência humana e do corpo e etc., mas os poetas também vão além dos limites da linguagem, e morrem pelas ruas ébrios como pombos atropelados por táxis, e ninguém se rala.

Não é portanto o grau de dificuldade ou de formação do perito, mas a importância que a comunidade dá à actividade.



Os desportos começaram como actividades práticas que se foram cristalizando em simbólicas, por exemplo, o salto à vara parece mesmo mesmo o acto de passar um canal a varapau. O Judo parece-se imenso com uma arte marcial.

A constelação da ginástica desenvolve corpos e rituais onde se harmonizam movimentos e músculos, mas que são inutilizáveis pela maioria da população no seu dia a dia.

Os desportos especializaram-se, adaptaram-se às regras, e tornaram-se não num hino a si próprios, mas às nações de atletas profissionais, que dão corpo a manifestações públicas de enaltecimento num palco mundial da maquilhagem.

Os desportos competitivos tornaram-se simulacros de si mesmos, e os atletas marionetas das sociedades.

Longe vai o tempo em que o atleta era considerado pela abnegação em dedicar-se a uma actividade que não lhe trazia retorno material, só por carolice.

Por paradoxal que pareça, nessa época nesses bons velhos tempos, a prática desinteressada era mais valorizada socialmente, e logo era também um incentivo.



No palco mundial do desporto, os jogos olímpicos são um palco mundial de vaidades nacionais. As corridas às medalhas são então ridículas. O desporto é um meio e não o fim.

Vi um excelente judoca gaulês, com mais de dois metros e 140 kg de peso, ganhar uma medalha de ouro.

Para que raio precisa um homem desta envergadura, de praticar Judo?

Não há aqui qualquer coisa de estranho em relação ao que pretendia Jigoro Kano?



De 4 em 4 anos as nações continuam a financiar os seus atletas, para estarem presentes e ganhar. Como se fossem os jogos, um barómetro do grau de evolução do país ou cultura, ou da vitalidade de um povo.

Se assim for, Portugal, este ano, ou está parado, ou morto. Até agora nem uma medalhinha.

E no entanto há quem continue a achar que o apoio dado ao desporto é um desperdício…como o dado à educação ou o dinheiro gasto nas forças armadas.

Se é para participarmos, ou fazemos isto com gente que nada recebe e só o faz por carolice, ou então tem de ser tudo apoiado a 110%.

Sem meio termos…com meios termos ficaremos de novo a meio de lugar nenhum.

Apoio total significa não ser condicional, significa não exigir. Significa encarar o desporto como algo valioso por si mesmo, e parte de um projecto civilizacional mais amplo.

Significa apoiar mesmo aqueles que mesmo sem vocação ainda assim contribuem para o prestígio de todos.

Nem tudo está mal. Apenas o mais importante. A mentalidade.

Não apenas dos atletas, mas do público que financia este esforço conjunto.



Exigem ao atleta o retorno do dinheiro que é dado ao atleta para fazer de marioneta para enaltecer a vontade de quem lhe paga.

Puerilmente, se o atleta falha o alvo, como é humano, e arredado do dinheirinho.



Isto dá uma péssima imagem do Estado. E por consequência do cidadão.

O desporto não é uma ciência exacta…Se em dez apoiados, um vingar, isto é trouxer medalhinhas, isto não é optimismo, é ficção.

O fraco apoio, condicional do ‘sem medalhinhas não há apoiozinhos’ deita por terra toda e qualquer fidelidade a um Estado que não é possível de respeitar, e que até se ressente.

Este é o Estado merceeiro, que oscila entre o ‘Deve’ e o ‘Haver’.

O Estado merceeiro é acompanhado pelo povo taberneiro, que debate nos cafés os critérios dos gastos dos seus impostozinhos, afincadamente e com galhardia estes assuntos de maior importância como o desporto, embora passe o resto da vida ignorando activamente para onde vai ou o que é feito ao dinheiro que lhe é extorquido diariamente pelo Estado para rotundas pré eleitorais, PPP’s, leasings automobilísticos e imobiliários, e mesmo bancos falidos.

O povo taberneiro quer acabar com a boa vida dos desportistas de alta competição tirando-lhes os subsídios, toma toma, pois os sacanas só querem é boa vida e andar com as costas ao alto, um pouco como os estudantes que só querem é copos e borga e passear os livros e que para vergar a mola tá quieto.

Só assim se compreende a tão resignada forma de pastar do ‘povo’ perante a austeridade amarelecida e virulenta.



No fundo o ‘povo’ projecta nos outros o que de si pensa, e a forma de castigar quem não lhe mitiga os complexos é uma catarse para os seus próprios defeitos, feita através da sonegação dos apoios que para si próprio não acha merecidos.



Desportivamente é assim Portugal, uma mulher feia que se maquilha sem confiança nos cosméticos e envergonhada por se sentir tão feia, mas que ainda assim, por um acaso de sorte ou de orgulho que teima em morrer, alimenta a esperança de ir ao shopping brilhar ao nível das outras.



A todos os atletas portugueses, olímpicos e calceteiros, o meu muito obrigado pelo vosso esforço em nosso nome.