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3.05.2013

Os académicos I



A ligação entre intelectuais e população em geral sempre foi fonte de perplexidade para quem se debruça sobre a cogitação sobre a dinâmica social.
Hegel no seu 'Fragmento de Sistema' alerta para uma necessidade de unir mitologia e razão para se obter uma adesão interina de 'coração' a uma racionalidade inclusiva.
Pese embora a interessante complexidade de tão altas considerações, o exemplo português constitui sempre uma espécie de excepção à regra que só a confirma.
Se no passado os intelectuais olhavam para a população no seu conservadorismo básico e titubeante com olhos benéficos que justificavam a estupidez e indigência com as condições materiais, hoje em dia penso não errar grosseiramente quando acho que os 'intelectuais' olham para a restante população como um filho bastardo emigrado olha para a família campónia.
O ressentimento grassa pois a classe mais esclarecida, não consegue modificar a classe corrupta que se apropriou do poder legitimada pela maioria da população.
Cada 'intelectual' acha que tem solução para os males do mundo, tanto como cada cidadão anónimo não letrado acha que é esperto o suficiente para saber como funciona o mundo e que só o engenheiro, o médico, o arquitecto sabem mais que ele.



A Universidade enquanto instituição é o melhor que temos, e a nossa única esperança enquanto sociedade. Representa um certo compromisso com o acto de se consagrar a vida à auto perfeição e à busca de respostas para o que quer que nos interroga.
É através do conhecimento do mundo que se pode partir para a sua transformação. É na Universidade que se produz e transmite ciência desinteressada,e só essa pode trazer promessas de liberdade à vida dos homens, pois os privados nunca irão lutar por uma liberdade que não seja convertida em divisa.
Como toda e qualquer instituição humana que implique hierarquia e longevidade no tempo, também a corrupção (ou cristalização nos dizeres de Hegel) fez evoluir a Universidade medieval para contextos distantes dos originais e bem afastados do que a academia professa. A escola pública tornou-se num gigantesco ATL e a Universidade portuguesa transformou-se numa fábrica de licenciados destinados a escritórios e fábricas.
Algures pelo meio deixámos de ser homens e mulheres.
A academia tornou-se hoje na salvação e em parte do problema, porque se por um lado precisamos de todos os portugueses a participar na produção de conhecimento que sirva para o bem comum, por outro lado a universidade é a instituição mais reaccionária da sociedade portuguesa.



Quem é o académico?
O académico nasce sem saber, por alturas do ensino secundário. Confrontado com uma corrida que parece entrar na recta final, o jovem e a jovem, começam a imaginar o que será um conceito de felicidade futura e realização profissional. O próprio 'superior' que aparece a seguir a 'ensino' dá a ideia de uma possibilidade de pertença a casta distinta, e eis que os jovens embarcam não na prossecução de uma jornada prazentosa, mas numa perseguição de carreira onde se podem encaixar numa sociedade que só recompensa quem para ela se sacrifica.
Assim evidenciam-se duas características dos académicos contemporâneos, a falta de humildade e a humilhante subserviência e adesão de 'coração' ao status quo, esboroando qualquer esperança que possamos ter em ver nos universitários os percutores de mudança social, falta-lhes imaginação e vontade, pois são formatados pela recompensa em forma de carros, casa, consideração social, e reconhecimento pelos pares, afinal, quem tem a segurança da conformidade não precisa de mais merda nenhuma.

Os jovens académicos portugueses são regra geral, pálidos reflexos de monges copistas medievais, desprovidos da adesão religiosa destes.
Apenas produzem o conhecimento científico necessário para obter reconhecimento, em particular dos que escolheram para 'pares', numa traição grosseira ao espírito polímata que deveria ser uma das fontes possíveis de alguma humildade. Raros são aqueles que não bocejam ou desvalorizam o campo de saber alheio, como forma de enaltecer o seu, e uma análise do funcionamento dos orgãos da função pública portuguesa poderia facultar verdadeiras novelas para comprovar esta opinião.
A psicóloga cospe sobre o filósofo, o engenheiro sobre o dramaturgo, o escritor sobre o arquitecto, e assim onde quer que se entre em competições sobre o carácter utilitarista de certs ocupações de corpo e espírito.



Mesmo as gerações mais novas até aos 40 anos vivem na dicotomia entre aquilo que observam, uma verdadeira fogueira de vaidades, medieval, senhorial, corporativista, que cinde e enfraquece a 'nação' e o sentimento de se ter atingido algo, uma posição, uma evolução, uma posição, uma evolução na vida, para um estado que merece reconhecimento respeito e notoriedade.
Todos entoam a bom som a indigência de Portugal, do meio académico, mas exigem que sejam tratados como professores, ou que os cheques tenham doutor ou doutora mesmo que o sujeito só seja licenciado.
Dá-se o caso caricato de se atrapalharem em plena aula com o importante detalhe se a pessoa a quem orientam a tese de mestrado é colega ou aluna, e eu assisti no processo de Bolonha a apresentações de orgulhosos estudantes de pomposos mestrados, que mais não eram que o 5º ano da licenciatura pré Bolonha.
A seriedade dada ao grau, como forma de enunciar a capacidade técnica ou científica é submersa ante a dignidade que se exige na forma de tratamento, aos demais.
Os departamentos universitários transbordam de doutores doutorzinhos mestres e mestrinhos em sintonia de reverência por títulos que só vejo exemplo comparável no mundo das artes marciais, com a pompa inscrita em cintos coloridos.

Cada chefe de aldeia tem o séquito, um microcosmos.
Dele depende financiamento para mais uns anos de vida dedicada à cópia inventiva, bem como da intrudução dos iniciados no complexo mundo dos especialistas.

O título, em Portugal nada tem que ver com uma opção de vida pela tarefa da instrução própria, tem a ver com a obtenção de posição social.
Tem a ver com o arquétipo da fidalguia como filho de alguém, por via directa como a cunha ou indirecta como o 'self made man ou woman' que se esforçaram por fazer parte do clube. Isto no sentido de que um licenciado é socialmente visto com olhos mais doces que o calceteiro que sendo trabalhador braçal não teve coitado cabeça para mais, para a hercúlea tarefa de acumular 180 créditos bolonheses.

Não interessa o que se sabe ou como se sabe, interessa fazer o que os outros fazem.
A população que paga o ensino superior quer dar o melhor aos filhos dando-lhes a hipóteses que nunca tiveram, de sair do lodo do trabalho mal remunerado, mal considerado, sujo, braçal repetitivo, contribuindo para o mesmo sistema discriminatório que em silêncio abominam.
Temos uma geração de infantes e ninfetas nas universidades portuguesas que vão prosseguir os estudos como forma de obter aceitação perante os pais e sociedade, mais que por gosto do que vão fazer, coisa que talvez nunca descubram.
Assim que se 'formam', pois até lá são 'deformados', tornam-se naquilo que estudaram, acérrimos defensores das suas vaidades pessoais ou vazios espirituais, que verdadeiros amantes do saber enquanto actividade humana.

Há a desconsideração latente e submersa entre áreas de saber, por critérios que variam ao longo do tempo e da empregabilidade, os de letras são uns tolinhos que estudam coisas que não servem para nada, e os dos números é que fazem coisas e são calculadoras ambulantes.
Entre instituições de áreas semelhantes há o preconceito sobre o grau de exigência de cada curso concorrente, ou a aplicabilidade ao 'mundo do trabalho'.


Portugal, como reconfirmei com um colega meu, é um país medieval cujas aldeias competem ainda nas feiras e nos arraiais. As figuras tutelares e místicas do padre, do morgadio e do doutor, estendeu-se a todos os planos sociais, aoinvés de se diluir a hierarquização.
A visão unívoca do mundo após a queda do comunismo criou outra zona de exclusão sujeita ao mercado.
Lembro ainda os muitos milhares de mulheres e alguns milhares de homens que correram aos cursos de letras para acederem a uma carreira docente segura, pois os cursos 'estavam a dar', e todos se queriam libertar não só dos trabalhos 'sujos' como aumentar a sua auto estima como 'senhor professor' ou stôra, mesmo que para isso não tivessem qualquer vocação, num paralelismo com o que se passa hoje em Medicina.

Portugal, falhou em tornar-se numa sociedade de conhecimento, permanecendo o que já era dando ares de ser outra coisa, uma sociedade da aparência e do privilégio.
Por mais ideias e teorias que os estrangeirados tragam para o torrão pátrio, de escandinávias ou canadás, tudo será corrompido pela mentalidade medieva portuguesa, e parece que a igualdade ou o equilíbrio só é possível de ser alcançado através da igualdade expressa em números nas folhas de vencimento. Só assim pode esta população construir os seus critérios de valor, o que já de si diz algo sobre esta população.
Os estrangeirados que crescem em número revelam verdadeiro amargor, através das redes sociais, sobre o lodaçal bafiento que Portugal efectivamente é.
Mas como é normal, fazem parte do problema e não da solução. Mas compreende-se o seu amargor.
O asco pelo povo comum, pela maioria da população emerge pela traição contínua deste povo a si mesmo, conjunto de indivíduos básicos e limitados com orgulho nas suas limitações, indigentes orgulhosos e convictos nas virtudes cívicas e no apreço pelo semelhante que varia de acordo com a arrogância desse mesmo semelhante em convencer da sua superioridade.
É portanto natural esta sobranceria que caracterisa o atavismo de uma população de gralhas e pavões dedicados ao culto da aparência pois é a aparência que mais facilidades práticas dá nesta sociedade que construímos.

Somos um povo de triste gente da qual eu faço parte.

2.25.2013

Emeliantes


I
                A Empresa Municipal de Extorsão de Lisboa (EMEL), enquanto instituição encontra paralelo simbólico com o Estádio Municipal de Aveiro ou com o Centro Cultural de Belém, como testemunhos para gerações vindouras de modas de espírito que caracterizaram o Portugal saído da integração europeia e respectivo ‘amadurecimento’ da citada ‘integração’.

A EMEL foi, é mais uma iniciativa a par das eleições na chamada democracia contemporânea que cai sob o epíteto de ‘armadilha para os parvos’.
Se ao votar o cidadão legitima o pequeno leque de escolha que lhe é forçado por via oral com a ajuda de leis e mais leis, a EMEL surge comparativamente na altura da sua implantação como a receita para mais mobilidade e melhor ambiente para a cidade de Lisboa, sempre a encoberto de um contexto volátil a que os fazedores de opinião e de políticas públicas dão o nome de ‘progresso’.
A população, lentamente convencida que pensa bem e suficiente, não tem instrumentos de reflexão crítica, pois afinal o que conta é betão e asfalto e fazer contas para trabalhar em fábricas, e portanto o ordenamento do território sujeita-se aos grandes empregadores da construção civil.
Mas voltemos à EMEL, surge em Lisboa para ‘ordenar’ o trânsito que era caótico e nada amigo do ambiente.  Tudo isso mudou hoje, Lisboa mais parece um relógio suíço de eficiência rodoviária, e temos gamos e veados a par e par com passarinhos nos jardins da cidade. Desculpam-se os responsáveis da tutela com o aumento do fluxo de automóveis, previsto há mais de 30 anos, mas ao qual a maior resposta foi uma aposta nas rodovias e na segmentação do espaço a ser taxado.
Para quem não se lembra a EMEL surge com campanhas de charme provinciano, como ainda as actuais, tornando-se naquilo que é hoje uma empresa de tamanho médio que alberga em quarentena quem precisa de fazer uns trocos para o partido.
Foi e é imposta ao cidadão através do aparelho estatal, e no sítio web da empresa, encontramos um optimismo eufemístico nos textos que dão a conhecer a missão da empresa, isto se conseguirmos digerir o impacto inicial da campanha publicitária em www.emel.pt que não passa de mais uma fantochada de charme popular e sensacionalista com direito a charanga e ninfetas dançando em redor dos credores que submissamente pagam dando o exemplo de boa cidadania. Pode-se ler:
‘Com a criação da EMEL, tem vindo a ser feito um importante trabalho de organização do estacionamento e mobilidade na cidade.’
A EMEL orgulha-se de ajudar a ordenar o trânsito mais concretamente no relacionado com o estacionamento dos veículos automóveis que circulam em Lisboa.
II
A generalização deste meio de transporte por detrimento de outros resulta numa observação serena da total incompetência grosseira de todos os governos que ao longo de todas as magistraturas desde a democracia de 1974 têm falhado em implementar uma política lógica para o sector dos transportes , não porque tanto especialista não veja ou elabore uma, mas pura e simplesmente porque o equilíbrio de poderes, opta de forma diversa, e quando se fala em equilíbrio de poderes o que realmente se quer dizer é ‘corrupção’.
Não se conseguiu implementar um sistema de estacionamento na periferia urbana, gratuito e seguro, nem estender a área suburbana para fora dos limites concelhios sem ser através da especulação imobiliária, e é por isso que ainda é mais barato trazer o carro para Lisboa que pagar o passe mensal para fazer 30 ou 40 quilómetros em percurso suburbano onde se podem observar os erros urbanísticos em abundância pitoresca e variada.

Estacionar em Lisboa tornou-se efectiva e de forma deliberada, um luxo, branqueado à população como necessário por causa do ambiente e da mobilidade, que curiosamente nada lucram com a divisão geográfica em áreas de maior taxação, ordenadas por cores, de forma a tornar o centro, ou seja, a zona mais agradável para os pedestres circularem, em verdadeira zona gourmet dentro da cidade.
O luxo divide e tem de ser pago principescamente, e é assim que a  maior parte dos condutores aceita de forma ruminante mais este pagamento em troco do aluguer de um espaço para depositar o seu veículo.
A autarquia gere a mobilidade e a qualidade do ar, não proibindo elementos que as podem limitar, leia-se o estacionamento abusivo e a poluição proveniente dos tubos de escape dos veículos, mas ‘desincentivando’ democraticamente os condutores a pagar pelo privilégio, o que pelo menos revela uma falácia óbvia nesta transacção esquizofrénica entre a população (Câmara Municipal de Lisboa) e a população, o caro condutor.
Há qualquer coisa de kafkiano no facto de uma empresa pública alugar o espaço de cidadania aos cidadãos, espaço esse ordenado não por convenções ambientais mas por áreas bem definidas de sujeição à especulação imobiliária, como revelará a comparação entre as zonas mais caras de taxação com as zonas onde se situam os escritórios e serviços mais caros.

Em Lisboa encontram-se hoje escassas áreas de estacionamento gratuito, de razoável dimensão. As que existem devem a sua liberdade a impeditivos de propriedade ou desatenção do afã em colocar parquímetros que funcionam às mil maravilhas enquanto depuradores do ar atmosférico.  O frenesim parquimetrador obriga a colocar a questão:
Será a exploração comercial do espaço público a única forma de ordenamento do estacionamento em Lisboa?
Como parece que sim, pode-se comparar o modo de pensar em relação ao estacionamento, como aquele em relação à legalização da prostituição, já que não se consegue resolver o problema, vai de o fazer pagar impostos.
Torna-se o Estado português um proxeneta, e com o monopólio da metadona, também um ‘dealer’, mas isto é o progresso.
III
O trágico disto tudo reside no facto de haver uma consciência clara no que deve ser feito, mas falta de vontade política, ou melhor, não interessa a muita gente com poder de decisão, neste sector da vida pública, como noutros.
O que nos leva a confirmar, em Portugal, a resolução do problema nunca é solução.
É preferível continuar a ter níveis proibitivos de degradação do ambiente e das estruturas, no ar e no ruído, que resolver a situação e perder a renda das multas e das senhas dos parquímetros.
Como estamos, pinga dinheiro para a autarquia e para os gestores. Resolvendo, só ganharia o público em geral.
Desincentivar a entrada e circulação de ligeiros na capital implicaria um avultado investimento em acessibilidades, edifícios multipisos de estacionamento gratuito, e uma rede de transportes públicos digna desse nome, e não assente no transporte rodoviário, que deve sempre ser o complemento do transporte sobre carris, verdadeiramente vocacionado para o transporte de massas.
Dirá o neo liberal hodierno, que não há dinheiro para coisas à borla como o estacionamento para os gestores da EMEL, e também que o resto do país não deve pagar pelas benesses de Lisboa tanto quanto os lisboetas não pagam as scuts noutras regiões, e isto independentemente das inúmeras apresentações de estudos acerca da incomportabilidade ambiental para a vida das pessoas que acabarão a pagar duas e três vezes mais de forma directa e indirecta.
O estacionamento em Lisboa é tão caro, que se paga mais numa meia hora na Avenida de Berna, que num dia inteiro no Entroncamento, e só um cidadão desatento pode pensar que é para evitar que as pessoas do Entroncamento venham para Lisboa com o carro.
Estes bairrismos portanto, não devem ser alimentados, Lisboa rende, logo o lisboeta é explorado. Existem baldios, mares de lama no Inverno e de pó no Verão, onde a autarquia não teve meios financeiros ou planos para os locais em questão, mas antes os ‘rentabilizou’ colocando parquímetros topo de gama, marcas imponentes da preocupação ambiental da autarquia governada por um não eleito democraticamente, e que portanto não confirma os votantes como ‘parvos’.
Onde não pode a EMEL omnipotente colocar parquímetros, a autarquia autorizou a táctica musculada  de colocação de sinais de proibição de paragem e estacionamento, que impossibilitem o estacionamento gratuito, além dos lugares preparados para o efeito, e pagos duplamente pelo cidadão. Tudo parece querer forçar o cidadão a estacionar onde se paga.

Um exemplo que se pode dar é o da via junto ao Estádio Universitário de Lisboa, entre o centro hípico e a Faculdade de Letras.
Na berma onde só estacionavam veículos de tracção às 4 rodas, estacionam regularmente agora com o aplanamento, outros veículos.
Primeiro a autarquia tentou evitar o estacionamento colocando lancis a meio da estreita via, o que levou a um coro de protestos por causa dos inúmeros acidentes causados. Depois tentou, ainda com dinheiros públicos, inclinar a berma de forma a impossibilitar o estacionamento, mas de novo o aplanamento de alguns mais teimosos levou ao desfecho final, bastou vir a EMEL com sinais de trânsito e uma carrinha cheia de bloqueadores para terminar um estacionamento furtivo, mas que em nada prejudicava a circulação, ou seja, o critério seria mesmo o de forçar o estacionamento legal e taxado do qual os condutores fugiam, pois justamente ninguém quer pagar.
O que chateia à EMEL não é o estacionamento esteticamente reprovável sequer, mas a não cobrança da ocupação desse espaço.
IV
A EMEL é uma empresa que não produz nada, não traz valor acrescentado a nada, apenas se limita a extorquir dinheiro a partir do espaço público.
O modelo de negócios desta empresa e de outras semelhantes baseia-se no princípio da extorsão estatal, que se materializa na rabiscagem de linhas brancas delimitadoras do espaço na via pública e em máquinas de emissão de bilhetes coadjuvadas por sinais de trânsito e por fiscais pagos ao frete na sua missão pidesca.
É portanto também um monumento ideológico em honra da xico esperteza nacional, bem lustrada em campanhas kitsch delicodoces que visam amaciar a opinião pública e ir garantindo os lucros para alguns, com essa aceitação.
Veja o cidadão quem gere essa e outras empresas municipais.  Assim qualquer um pode ser empresário, não basta saber, é preciso amigos influentes e legislação a condizer.
Veja o cidadão quem é quem, e de onde vem cada quem, alguns currículos são públicos.
Veja quem é cada gestor da EMEL, cada acessor e cada vogal, e percebe-se que a estrutura se repete por todo o país, e que geralmente é um espaço onde se estacionam, de forma remunerada, alguns veículos bípedes dos partidos.
Entre outras, a EMEL representa a forma de ver dos nossos ‘estadistas’ para os quais a solução dos problemas se reduz a classificar o cidadão de contribuinte e cliente.
Esta moda empresarial e metafísica na qual nós provincianos portugueses somos sempre os últimos a aderir e últimos a largar, circula livremente desde o gestor ao fiscal de rua, que argumenta com a sua missão ética de ajudar no trânsito e dar graças  por ter um emprego, sempre com o semblante de polícia desconfiado que já ouviu todas as desculpas possíveis, e mais uma.
O cidadão prevaricador e cantante não passará a seus olhos de um prevaricador de 2ª.É vê-los ciclicamente em rondas necrófagas controlando o tempo e o espaço, alugados de forma a distribuir equitativamente por todos o milagre do estacionamento.
V
Observam-se moles humanas migrantes, de poiso estacionário em poiso estacionário para zonas em que estacionar não seja a ‘pagantes’, forçando estas massas para longe das zonas de castas coloridas com que a EMEL divide a cidade. É o condutor forçado ou a pagar a uma gasolineira, ou à EMEL ou aos passes intermodais a preços escandalosos, para poder circular para dentro da urbe.
Assim, a EMEL não ajuda coisa nenhuma à ordenação da mobilidade, mas lucra com zonas de exclusão, contra punição pecuniária por causa de um serviço que em nada contribui para o bem estar do cliente ou da cidade, e sendo assim, a EMEL é por definição uma empresa de extorsão estatalmente assistida.

Ergo, já que temos um governo que incentiva o crime de extorsão, e é até um governo maioritário nesse crime, resta ao cidadão recorrer por todos os meios e formas  à desobediência civil como forma de luta mais radical de modo a tornar mais simétrico o esforço de resistência.
O cidadão que não possa ou queira pagar lugares alugados pode e deve vandalizar discretamente os parquímetros recorrendo aos vários modos de terrorismo químico e mecânico contra pobres e inocentes máquinas, e assim, sem parquímetros funcionais não pode a ‘empresa’ extorquir-lhe legalmente dinheiro.
Relembro que não estará a prejudicar ninguém pois se a ‘empresa’ é pública, também é o espaço que ela ‘rentabiliza’, e que o condutor paga.
O condutor paga já por algo que é seu, portanto está no direito de estragar o que lhe apetecer, quem sabe o prejuízo seja tão avultado que fique mais barato implementar um plano franco e lógico de ordenamento territorial e dos transportes em Portugal… 

8.05.2012

A sacralidade do esforço I

Com estes episódios da participação olímpica portuguesa no ano da nossa graça de 2012, e da nulidade de conquistas da nossa comitiva, paira uma interrogação em surdina.




Estaria à espera o português médio, que alguma medalha de reconhecimento externo viesse dar alguma consolação ao peso miserável que sente em ser português no início do século XXI?

A geração suburbana domesticada, envernizada e efeminada que nasceu e cresceu à sombra de uma burguesia de escritório adolescente nos anos 80, adulta nos 90 e senil nos 2000, plenamente integrada na Europa e no quer que seja o ‘projecto Europeu’ -(que passa pelas viagens low cost quando as pontes e feriados permitem ir a Londres tirar fotos para o Facebook ou a Paris assistir a um concerto de artistas que tanto mais valem quanto mais alternativos e difíceis de enquadrar forem, claro está para mostrar aos outros que somos modernos, europeus…)-esta geração espera ser enaltecida através da fraca e esquálida, distorcida imagem de Portugal que acarinham desde a EXPO 98, o Portugal dos campeonatos da Europa e do Mundo de futebol, dos jogos olímpicos, ou dos serôdios e idiotas anúncios de turismo papagueados pelos meios oficiais e com voz off em inglês que se mostram lá fora e cá dentro quando os hoteleiros do Algarve começam a ver que os turistas pés descalços arranjaram uns trocos por melhores pousios…para longe do produto turístico da paisagem e do sorriso.



Não discutindo o carácter inquinado, para não dizer corrupto, que caracteriza hodiernamente os Jogos Olímpicos, verdadeiro campo de batalha ritualizada e fogueira de vaidades, torna-se muito interessante perceber a argumentação do português médio, acerca dos apoios dados ao atleta olímpico. Percebendo os argumentos utilizados, percebe-se o que se passa na sua cabeça, como vê o mundo, e isso não é resultado que se menospreze.



O que se ouve nos cafés, é que só devem ser apoiados os atletas que trouxerem medalhas ou os que ‘derem o litro’.

Ouve-se também que não devem ser apoiados porque fazem vidas faustosas de vida fácil à custa do erário público, e que ‘se eu tive de trabalhar desde os 14 anos e não me fez mal nenhum, eles que verguem a mola e se querem fazer desporto o façam nos tempos livres’. Os cafés nacionais são pródigos locais de recolha para quem quer apanhar pérolas argumentativas deste género.

Também se encontram os defensores, os mais incisivos dos quais são os próprios atletas. Que não é fácil ser atleta de alta competição, exige um esforço tremendo, que as compensações não são diferentes, e mais sabe-se lá o que.

E é verdade.

Mas não o é só para os atletas…que dizer dos pintores, bailarinos, músicos, escritores e toda essa corja que aguarda sedenta e com dentes vampíricos, a possibilidade de arrefinfar as dentuças na tenra carne dos impostos cedidos pela população para usufruto e consolidação do bem comum? Corja de marialvas que querem viver no bem bom à conta do mexilhão…



O importante para mim não é saber se devem retirar dinheiros públicos para comparticipar o que quer que seja que acham que enaltece o meu país.

E qualquer atleta português enaltece o seu país.

E por isso merece todo o seu apoio.

Para mim o importante, é pensar na questão de princípio por detrás do vil metal.

Um país que contribui para o seu próprio enaltecimento é como uma mulher que se embeleza, sem fim prático em vista que não o de ficar mais bonita ainda. Demonstra para si mesma afectuosamente o seu amor próprio.



É interessante pensar que um bom calceteiro também enaltece o seu país.

Que se calhar muito calceteiro que nega subsídio ao atleta, o faz em parte porque um espinhozinho lá bem fundo escondido no seu sentimento de dignidade lhe lembra que não lhe dão o devido valor.

Porque não é também o calceteiro apoiado?

Porque não existem olimpíadas da construção civil?

Ou simplesmente porque existem actividades humanas que os humanos valorizam mais?

Se é certo que demoram anos a desenvolver uma atleta como a Telma Monteiro ou o Nuno Delgado, anos para aparecer uma Rosa Mota ou Carlos Lopes, também não deixa de ser verdade que um bom calceteiro também exige anos de actividade.

O Nuno Delgado ver-se-ia aflito a calcetar o mais minúsculo passeio, e o Phelps exclamaria ‘Damn!’ se lhe pedissem para calcetar vinte metros de calçada à portuguesa à meia esquadria com losangos em basalto, tal e qual como qualquer iniciante de calceteiro, e como os primos, os trolhas ou pedreiros.

Poder-se-à dizer que uns vão além dos limites da resistência humana e do corpo e etc., mas os poetas também vão além dos limites da linguagem, e morrem pelas ruas ébrios como pombos atropelados por táxis, e ninguém se rala.

Não é portanto o grau de dificuldade ou de formação do perito, mas a importância que a comunidade dá à actividade.



Os desportos começaram como actividades práticas que se foram cristalizando em simbólicas, por exemplo, o salto à vara parece mesmo mesmo o acto de passar um canal a varapau. O Judo parece-se imenso com uma arte marcial.

A constelação da ginástica desenvolve corpos e rituais onde se harmonizam movimentos e músculos, mas que são inutilizáveis pela maioria da população no seu dia a dia.

Os desportos especializaram-se, adaptaram-se às regras, e tornaram-se não num hino a si próprios, mas às nações de atletas profissionais, que dão corpo a manifestações públicas de enaltecimento num palco mundial da maquilhagem.

Os desportos competitivos tornaram-se simulacros de si mesmos, e os atletas marionetas das sociedades.

Longe vai o tempo em que o atleta era considerado pela abnegação em dedicar-se a uma actividade que não lhe trazia retorno material, só por carolice.

Por paradoxal que pareça, nessa época nesses bons velhos tempos, a prática desinteressada era mais valorizada socialmente, e logo era também um incentivo.



No palco mundial do desporto, os jogos olímpicos são um palco mundial de vaidades nacionais. As corridas às medalhas são então ridículas. O desporto é um meio e não o fim.

Vi um excelente judoca gaulês, com mais de dois metros e 140 kg de peso, ganhar uma medalha de ouro.

Para que raio precisa um homem desta envergadura, de praticar Judo?

Não há aqui qualquer coisa de estranho em relação ao que pretendia Jigoro Kano?



De 4 em 4 anos as nações continuam a financiar os seus atletas, para estarem presentes e ganhar. Como se fossem os jogos, um barómetro do grau de evolução do país ou cultura, ou da vitalidade de um povo.

Se assim for, Portugal, este ano, ou está parado, ou morto. Até agora nem uma medalhinha.

E no entanto há quem continue a achar que o apoio dado ao desporto é um desperdício…como o dado à educação ou o dinheiro gasto nas forças armadas.

Se é para participarmos, ou fazemos isto com gente que nada recebe e só o faz por carolice, ou então tem de ser tudo apoiado a 110%.

Sem meio termos…com meios termos ficaremos de novo a meio de lugar nenhum.

Apoio total significa não ser condicional, significa não exigir. Significa encarar o desporto como algo valioso por si mesmo, e parte de um projecto civilizacional mais amplo.

Significa apoiar mesmo aqueles que mesmo sem vocação ainda assim contribuem para o prestígio de todos.

Nem tudo está mal. Apenas o mais importante. A mentalidade.

Não apenas dos atletas, mas do público que financia este esforço conjunto.



Exigem ao atleta o retorno do dinheiro que é dado ao atleta para fazer de marioneta para enaltecer a vontade de quem lhe paga.

Puerilmente, se o atleta falha o alvo, como é humano, e arredado do dinheirinho.



Isto dá uma péssima imagem do Estado. E por consequência do cidadão.

O desporto não é uma ciência exacta…Se em dez apoiados, um vingar, isto é trouxer medalhinhas, isto não é optimismo, é ficção.

O fraco apoio, condicional do ‘sem medalhinhas não há apoiozinhos’ deita por terra toda e qualquer fidelidade a um Estado que não é possível de respeitar, e que até se ressente.

Este é o Estado merceeiro, que oscila entre o ‘Deve’ e o ‘Haver’.

O Estado merceeiro é acompanhado pelo povo taberneiro, que debate nos cafés os critérios dos gastos dos seus impostozinhos, afincadamente e com galhardia estes assuntos de maior importância como o desporto, embora passe o resto da vida ignorando activamente para onde vai ou o que é feito ao dinheiro que lhe é extorquido diariamente pelo Estado para rotundas pré eleitorais, PPP’s, leasings automobilísticos e imobiliários, e mesmo bancos falidos.

O povo taberneiro quer acabar com a boa vida dos desportistas de alta competição tirando-lhes os subsídios, toma toma, pois os sacanas só querem é boa vida e andar com as costas ao alto, um pouco como os estudantes que só querem é copos e borga e passear os livros e que para vergar a mola tá quieto.

Só assim se compreende a tão resignada forma de pastar do ‘povo’ perante a austeridade amarelecida e virulenta.



No fundo o ‘povo’ projecta nos outros o que de si pensa, e a forma de castigar quem não lhe mitiga os complexos é uma catarse para os seus próprios defeitos, feita através da sonegação dos apoios que para si próprio não acha merecidos.



Desportivamente é assim Portugal, uma mulher feia que se maquilha sem confiança nos cosméticos e envergonhada por se sentir tão feia, mas que ainda assim, por um acaso de sorte ou de orgulho que teima em morrer, alimenta a esperança de ir ao shopping brilhar ao nível das outras.



A todos os atletas portugueses, olímpicos e calceteiros, o meu muito obrigado pelo vosso esforço em nosso nome.

3.30.2012

Conjugalidade deficiente e reprodução social




Aspiro a que o meu país inaugure um novo caminho histórico. O meu país é Portugal.
Não é a Europa, nem um mundo global, nem uma região em particular nem muito menos uma qualquer agremiação política, como por exemplo o cancro deste país, que são os partidos políticos.
Julgo que o poder, e quando me refiro ao poder, refiro-me à gestão da coisa pública, deve ser exercido de forma a que todos possam ter condições para o fazer. Há mais escolhas para além deste sistema político bipartidário, com um Parlamento sobredimensionado, e esvaziado de representatividade.
O povo que decida.
Será?
Um olhar pela história nacional, não mergulhando nas especificidades de cada época mostrará que o Parlamento português actual, não é mais que a perpetuação das cortes monárquicas, desde a fundação da nacionalidade até ao pós 25 de Abril. Tem-se perpetuado o mesmo sistema de classes, a coberto de nomes como ‘meritocracia’, e ‘confiança política’.

Deixa-se morrer a noção de estrita igualdade, potencial e real, e com ela morre o cidadão e nasce o contribuinte. A soldo do ‘povo português’.
Que complexo de inferioridade civilizacional é este impregnado na mais velha nação europeia, que faz observar pelos séculos uma contínua espoliação por parte das elites da maioria da população, que se canibaliza cada vez mais a si mesma, com a desconfiança de contribuir para a felicidade alheia dos seus iguais, enquanto os grandes carteiristas a roubam até da dignidade?

Um dos mecanismos utilizados pelos políticos profissionais é a técnica da ‘relação conjugal falhada’. Os governos sucessivos, desde a invasão bruxeleante de dinheiros comunitários têm usado esta táctica que consiste em projectar uma insondável complexidade da mesma, e nela os parceiros não se suportam mas por comodidade ou por outras razões que possam ser convenientes, não se separam. Dizem sem saber e para que não se saiba, ‘É muito complicado.’ – As políticas e alternativas aparecem a essa luz também, ou seja, os governantes dizem que de outra forma é complicado, complexo, seja porque não sabem como e porquê ou porque não querem que se saiba, pois o que garante a longevidade do político profissional é a ignorância do eleitor.

Dissolver o parlamento?Proibir os partidos políticos?
É muito complicado.
Aumentar a escolaridade obrigatória e acabar com as diferenças sociais?Muito complexo.
Fora da partidocracia?Complicadissimo…
Dentro da partidocracia? Complicado…

Ou seja, todo o exercício político se apresenta como uma difícil tarefa não em razão daquilo que o cidadão sabe e tem de fazer, mas exactamente por causa do ignoto insondável, que lhe faz crer que nunca saberá uma forma de ajudar a um bom governo.
Aparece assim a conjuntura politica nacional actual, como um mecanismo de elevada complexidade, em que todos estão mal, menos alguns, mas que qualquer alteração ou divórcio são de evitar, porque há que manter o casamento, em nome da ‘serenidade política’, dos mercados, dos pactos de regime e de outras desculpas de amantes adúlteros.

1.24.2012

So, you think you can snitch

Miguel Gonçalves, o  ‘Punhetas’ (para os amigos)

Disclaimer, ou aviso à navegação:


    Os autores deste texto declaram absolutamente nada terem contra, o jovem Miguel Gonçalves, a ‘Spark’, Shark ou qualquer projecto deste tipo, ou qualquer coisa que os valha.
O motivo que anima a nossa análise é a pura observação sociológica ao nível de discurso e padrões de comportamento dos visados, e qualquer frase ou expressão menos ortodoxa será apenas um exercício de estilo literário destinado a adornar a composição e torná-la menos entediante e fastidiosa, e não significa de modo algum um atentado à dignidade e bom nome dos visados, que não é de perto ou de longe a intenção do texto.

I-    A mensagem

Punheta, substantivo de acção praticada com o punho.
Quando se bate punho, bate-se uma punheta.
No vernáculo erótico a punheta é um acto libidinoso, pouco ou nada passível de concepção, ou seja, no âmbito reprodutivo, a punheta é um acto estéril.
Estéril, pouco eficaz reprodutivamente, mecânico, ritmado, vigoroso q.b., mas sem originalidade.

1)    Surgiu no último Verão, um sucesso nas pistas de dança da burguesia civilizada, um conjunto de vídeos cuja vedeta é um camarada de nome Miguel Gonçalves.

Ao mais de meio mundo que viu os vídeos, outro meio se juntou a exultar  a cura para uma suposta enfermidade de que Portugal padece.
O tom enérgico e contagiante, a indigência de complexidade de ideias tornou este magro mancebo num greatest hit.
Aliás, um grande batimento (Pitch) é também alusão a um projecto, (…) de sua autoria e colaboração, o So, you think you can pitch, que  visa revolucionar a forma como o aspirante a qualquer emprego aborda o magnânime facultador do mesmo, ou seja o empresário.

Advertimos desde já o leitor interessado que é necessário ser bilingue para perceber metade da parafernália linguística que aparece nos sites, vídeos do youtube e textos em que este formado em Psicologia colabora. Mas bilingue que tenha aprendido inglês em Portugal numa acção de formação de assistente de call center…pois nem um súbdito de sua Majestade ou sobrinho do Tio Sam conseguiria descodificar  tanto palavrão usado para dar uma impressão de complexidade pseudo-técnica na verborreia utilizada…quer nos websites, quer nas apresentações do próprio animador Miguel.

Fora do cubo, vá lá, outside of the box, mapas sushi cycle, take away talks e tantos outros  termos pseudo-técnicos com tradução bairrista, revelam claramente o aim, perdão, target, perdão… alvo desta acção de venda, pois não se trata de outra coisa.





2)    As empresas em Portugal, de forma geral são empresas de tipo decalque. Quer isto dizer que são empresas cujo modelo de negócio assenta numa base de observação/mimetismo, em português miúdo: quando alguma  se safa, umas 7 ou 8, ou 20 ou 30 surgem, consoante a versatilidade  do mercado em que se inserem.
É a chamada tascalogia ou ‘lógica dos cafés de esquina’ e que se baseia no seguinte silogismo.
P1- O Chico/Zé consegue safar-se na vida com o café que abriu.
P2-Eu não quero ninguém a mandar em mim e quero safar-me.
Conclusão – existem quase tantos cafés de esquina em Portugal como frequentadores dos mesmos.

As PME’s portuguesas surgem quase todas no estrito respeito deste silogismo comercial.
Passando ao lado das questões que se levantam acerca da vontade de ter um negócio próprio e engrossar as fileiras das PME’s, a realidade social hegemónica decorre nos cafés nos quais a maior parte da população aproveita para ir tomar um café ou uma mini e comentar as complexas ideias passadas pelos telejornais de péssimo jornalismo repetido durante mais de uma hora. É nesta lógica que surge o contexto da maioria empresarial portuguesa, pois um clube de campo ou salão de maçonaria mais não é que um café de esquina com mais algum requinte.

O nosso contexto, português, surge assim na utilização do vizinho como barómetro. Se está a dar para ele vai dar para mim, e assim se inunda o mercado com ‘competição’ que seria boa para o cliente não fora os fenómenos marginais de corporativismo, cartelização ou política do preço baixo, pois na hora de as nossas empresas se tornarem competitivas, simplesmente baixam a qualidade dos produtos e despedem pessoal, para acompanhar a baixa dos preços. Quem sofre no fim, ou melhor, quem paga, é sempre o cliente final. Isto é assim, geralmente, e claro que há excepções, mas são apenas residuais.



3)    Mas não é a cafés que o Miguel quer vender o peixe. É às médias/grandes empresas, ou às suficientemente abonadas para deitarem dinheiro fora julgando que apostam numa ideia de falsa inovação. É para as médias, grandes empresas que usam técnicas e termos técnicos mais elaborados, como coffee break em vez de ir tomar a bica/cimbalino, ou usam terminologia como outsourcing em vez de contratação de senhora de meia idade para limpezas.

É para as empresas que têm de apresentar horas de formação preenchidas com lavagens cerebrais e verdadeiras campanhas motivacionais para a vida, para a abnegação e entrega luterana ao trabalho, que Miguel e ‘cooperators’ se viram.

O jargão só funciona nessas realidades pois é nelas que reina, como qualquer telefonista, perdão, assistente de call center sabe, bastando lembrar-se do percurso formativo que recebeu até começar a receber chamadas.

O jargão só funciona ou para quem lida com ele numa base regular, ou para quem não o conhecendo, lhe confere significados druídicos. O que torna fascinante este assunto, é que de facto as empresas e sociedades sentem necessidade  de motivar para o trabalho, seja como forma de motivar as pessoas quando estas, por motivos variados começam a perceber que placebo de vida se tornou a sua. Isto em empresas a partir de determinada dimensão, e sociedades de determinado grau de complexidade e industrialização.


4)    O que vende Miguel?
O mesmo que qualquer empresa de trabalho temporário, perdão, empresa de outsourcing. Com o extra de que não tem de se ralar com o expediente de uma destas empresas, pois o Punhetas (batedor de punho), e restantes partenaires, são ‘criativos’ e não carregadores de piano, e por isso não arcam com o trabalho de ter uma estrutura que fornece um contingente contínuo de funcionários que nunca (ou muito muito remotamente possam ser) serão funcionários da empresa contratante, que não quer chatices com descontos indemnizações, seguranças sociais, renovações de contratos e outras coisas entediantes. Miguel também não quer.
Miguel e partenaires apenas querem servir de intermediários, estando a salvo deste infernal ciclo, vivendo nas boas graças dos patrões, mas não sendo os escravos empregados, nem sequer chegando a ser capatazes, a não ser uns muito negligentes no trabalho. Querem acções de formação ministradas a peso de ouro, bufando-se para empregadores sobre os canais de vendas da mercadoria humana que ensinam a submeter-se na lógica do ‘mercado’.
Mas não se pode dizer isto assim.



As ‘empresas’ ou ‘projectos’ do Miguel, visam de forma criativa (leia-se, com penteados exóticos e um relógio colorido em cada pulso e sapatilhas a condizer) colocar pessoas que vendem trabalho com olhos nos olhos com os empresários, verdadeiros heróis do século XXI. Oh sacrilégio, oh audácia.
Olhos nos olhos com um empresário?...Como é que alguém é capaz?
Um empresário pode mudar a vida de uma pessoa, nem que seja oferecendo-lhe um computador.
Diremos mais, nem que seja financiando campanhas eleitorais ou oferecendo novos rumos na carreira profissional de empregados despedidos graças a cupidez ou má gestão. Mas isto são outras núpcias.

Além dos exagerados encómios à classe à classe empresarial, (bem patentes no vídeo do Prós e Contras, em que no fundo um empresário de braços cruzados não sabe se ri se mantém cara séria tal não é a graxa que o vai cobrindo), no fundo àquela que mais proventos parece prometer, além de cobrar  pela psicologia barata que ministra em workshops para desempregados e empregados desmotivados, Miguel espalha confiança, energia.



O seu discurso é eléctrico, empolgante, motivador. Como todo o discurso de um bom demagogo.
Os seus apelos a ‘bora lá’, ‘até os comemos’ e ‘não nos podemos desmotivar’, são bacocos e idiotas.
Como outros semelhantes. Não só pela questão  de empregabilidade por áreas.

Se um empresário precisa de um torneiro mecânico, não cremos que se deixe convencer pela capacidade de um torneiro mecânico em se vender a si próprio.

A ideia subjacente a todo o modus operandi destes ‘inovadores', e que motiva este texto, é que tudo isto é uma luta, e que só lá vamos com o arregaçar de mangas.

Afinal, a pura força de vontade, e competência técnica que desta parece decorrer, é suficiente para superar as parolas nações setentrionais, que desde sempre fizeram colossais investimentos em educação e ciência…perdão quantidade biblícas de investimento no Ensino…ensino que deve ser vocacionado para o negócio, conforme a perspectiva do Miguel, que no caso português é quase exclusivamente de serviços.

A pura força de vontade e arregaçar de mangas, ou comer muita broa, como a naturalmente imbecil performance de Fátima Campos Ferreira traduz o ‘bater punho’ do Punhetas, são suficientes para competir e ganhar, de igual para igual com o colosso chinês e sua assimetral força de trabalho barata. Até se dá o exemplo do navegador quinhentista português, que com o desenrascanço lá levava o navio de bandeira estrangeira, numa profunda ignorância do Punhetas no projecto realizado previamente ao nível da tecnologia e investimento científico nos Descobrimentos portugueses. Dá até o exemplo de um país ‘muita bom’ no qual se dão portáteis às crianças como se isso fosse garante de grande investimento além de uma distorcida ou redutora visão de progresso além do ter e do saber.

Para o Miguel isto são apenas peanuts. Força de vontade e vamo-nos a eles. Contra os calões marchar, marchar.



5)    A maioria das empresas citadas pelo Miguel, são modelos de negócio de cafés de esquina, ou seja pequenas empresas que surgiram quando havia subsídios, até para o gel de mãos contra a gripe das aves. São uma espécie de dotcoms portuguesas que gravitam em torno das grandes (à escala portuguesa) PT’s, EDP’s, Galps e quejandas.
São paliativos contrafeitos de software para front e backoffice, que surgem em teses de licenciaturas e mestrados que emergem no cluster da UTAD, da qualidade do ensino superior da Universidade do Minho, que pelos vistos não prepara para o mercado de trabalho…
Estes exemplos de empresas que querem ser a Google, e que vendem quantidades bíblicas de software, não se sabe para onde, são serviços, portanto.
Serviços, serviços…resumindo, serviços.

Vamos a eles cambada, batendo punho ninguém nos para nos serviços. Pena que os serviços são a área mais vulnerável de qualquer economia.


6)    Oportunidades de negócio, joint ventures entre empregadores e empregados, é o novo mundo prometido.
Até a luta entre proletário e capitalista se esvazia de conteúdo, com ambos olhos nos olhos desempenhando uma dança igual ao desfile de um casting de um qualquer programa de talentos em que o empregado wannabe desfila defronte do potencial empregador mostrando os seus dotes de venda de si próprio e  ou de um alter ego que criou para passar a ideia de que é uma mais valia capaz de gerar receitas para o omnipotente empresário, mostrando a sua capacidade ‘de comer broa’, como bailarina de varão que ao mesmo se agarra com força, com punhos e dentes.

Claro que o varão simboliza a prosperidade do patrão, e por arrasto, a do empregado.


7)    Na minha modesta opinião, os discursos de Miguel, bem espremidos pouco mais que nada deixam beber. Apelam mais à emoção que ao exercício de raciocínio, que facilmente os desmonta. Atenção que a este exercício de pensamento, o Miguel apelida de ‘tábua nas costas’, pois tudo o que se oponha à atávica abnegação, e falar mal, ser do contra, ser velho do Restelo, ser negativista ou pessimista. Mai nada.
A indigência do pensamento neo liberal, cuja ideologia o Miguel deve ter apanhado enquanto estudava obras do tipo de ‘Como agradar a empresários em 30 minutos’ ou ‘Como fazer amigos influentes’, revela-se com lapidar  clareza na identificação do Curriculum Vitae, com canal de vendas.
A história da vida a experiência acumulada, deixam de fazer parte de um testemunho mais largo de âmbito, para se restringirem à função de tornar cada sujeito uma mercadoria de si próprio.
‘Ó cum carago, então se queres trabalhar, só com empresários que te dão emprego moço.’


A base de toda esta convicção está exactamente na aceitação e integração da total necessidade de uma sociedade capitalista na qual a competição por um trabalho é ponto assente, e a reificação da experiência de cada um, totalmente inevitável e desejável, num movimento de prostituição laboral e de personalidade dado como adquirido.

8)    O Miguel não é um jovem de ideologias. É um jovem de ideias.
O Miguel não é um jovem de reflexões. É um jovem de acções.
No programa ‘Prós e contras’, da RTP1, causou-nos estranheza ninguém perguntar ao jovem Miguel que vive em dois fusos horários, onde trabalhar, onde trabalhar com a convicção que o jovem aconselha. Nos serviços? Que fazer a dezenas de milhar de trabalhadores de meia idade que não tiveram possibilidade aprender a mexer no Magalhães enquanto enfiados em linhas de montagem fabris, nas muitas fábricas de multinacionais que fizeram de Portugal a China da Europa até à abertura cada vez maior dos mercados… Vamos mandá-las bater punho Miguel?
O jovem lá testemunha casos onde os patrões lá desabafam que não têm pessoas com vontade de trabalhar, de bater punho, com qualidade. Está resolvido o problema da nossa economia, não é um problema estrutural  decorrente do facto de nos termos tornado um país de serviços e importador. Nada disso.
O problema é que afinal estamos desmotivados e pior temos um problema de mentalidade, que o genial Miguel e partenaires descobriram numa viagem que fizeram em meia dúzia de meses pelo Oriente.
A mentalidade de resistência que o jovem denomina de negativismo, não é de todo um efeito de uma exploração centenária e descontentamento com a apropriação do espaço de decisão público por elites e castas privilegiadas.
Nada disso, para o Miguel, somos pessimistas porque não somos como os outros, os da optimista globalização, porque não arregaçamos as mangas porque estamos conformados com a nossa menoridade (não queremos arriscar) e no fundo porque somos calões, por isso não batemos punho.





9)    Miguel baseia-se em técnicas óbvias e basilares de Programação Neurolinguística, ou psicologia de vendas. Tão óbvias que parecem decalques de um livro.
A sua mensagem é a já indicada ‘contra os calões marchar marchar’, e a sua ideia de educação superior, é a de que a mesma deve estar sujeita às leis de mercado, pois como vimos o Punhetas acredita, piamente, que só há uma forma de estruturação social e económica.
As reacções muito positivas que tem obtido por toda a net, assentam nestes dois pressupostos: a) A sua qualidade como demagogo motivador e b)a partilha  generalizada da univocidade do mundo ou das mundividências.
Miguel não tem uma agenda política, nisso é honesto. Não divulga nem esconde o desejo de ter uma sociedade melhor. Apenas quer melhorar esta sociedade no quadro de um nicho de mercado que quer reservar para si, como o futuro empresário de um café de esquina, que quer singrar na vida. Quer muito modestamente um lugar ao sol.


10)    Fátima Campos Ferreira, apelida-o mesmo de ‘revolucionário’, numa grossa falha à verdade na qual ela revela a sua ignorância do significado do termo utilizado, e ele, da utilização de uma mesmíssima sopa reaquecida.
Oferece o mesmo caminho de sacrifício abnegado à lógica autotélica do mercado e do trabalho. Contra os canhões marchar, oferece uma mudança da mesma mentalidade, que é e continuará a ser a razão do nosso descontentamento, pois é a adesão a um modo de vida que não controlamos, e que dispensa o uso da razão, e no qual todos ralhamos cada vez mais com cada vez menos pão.
Mutatis mutandis, o vendedor de aspiradores, Miguel, deixou de dizer que o aspirador aspira, e passou a dizer que é uma máquina mágica que faz todo o pó e lixo entrar para dentro do tubo de sucção.


II-    O mensageiro
O Miguel era mais um jovem amargurado com a escolha académica que fez, ao que parece a Psicologia, e parecia condenado ao insucesso de ter de trabalhar como repositor numa grande cadeia de retalho ou como telefonista num call center onde teria de bater punho às queixas e desconsiderações de clientes negativistas e que deixam uma pessoa cansada, parecendo que levou com uma tábua nas costas.

Mas muniu-o a natureza com uma electricidade que ganhou num banho, e tornou-se empreendedor/criativo/empresário de sucesso, contrariando um pouco o seu discurso que diz que as universidades pouco ou nada preparam para o mercado de trabalho.
O Miguel é uma excepcional excepção, tem uma chave de fendas enorme, na manipulação da linguagem, e dos lugares comuns, tornando-se num grande interlocutor e um caso emblemático de como forma uma faculdade de Psicologia, um motivador, um leão a falar em público.
Mesmo que pouco ou nada se aproveite do que diz.
Mas o conteúdo não interessa, a motivação vem de uma resposta emocional e não conceptual, e neste contexto,  o Miguel é um dos melhores vendedores que já vimos em acção.

A sua aparição num programa televisivo de entretenimento despoletou uma verdadeira febre de acesso e partilha dos vídeos que protagoniza, sendo tratado por muitos como profeta ou visionário, e por outros como vendedor de banha da cobra, mas de excelente qualidade…o vendedor.



‘Bater punho’ foi mesmo a expressão que ajudou a celebrizar o enérgico jovem, e a dar um pouco mais de visibilidade  mediática ao cluster cosmético de happenings que ocorre em Braga, e cuja função é dar uma ideia de grande dinamismo , bem como mostrar à sociedade em geral que no anonimato operam pequenas grandes empresas de sucesso, sem se questionar a fundo essa ideia de ‘sucesso’.

A glorificação da vontade de trabalhar seja pelo salário que seja, mesmo  o mais baixo, e da paixão de se fazer o que se gosta, desde que seja devolvido em capital, são os dois mantras deste jovem.
Esta expressão de bater punho, é tão repetida, que supomos que todos os amigos de Miguel o tratam carinhosamente de ‘Punhetas’, liberdade que tomamos amigavelmente também.


A nossa sociedade, a portuguesa, precisa de jovens enérgicos assim, para o tecido empresarial, como para castings dos morangos com açúcar.
Em vez de jovens pensantes e com espírito crítico, este modelo projecta e glorifica os chicos espertos que sob uma capa de verborreia e cosmética de inovação nada mais pretendem vender que os seus semelhantes, a outros. Perdão, ajudar uns e outros a ganharem mutuamente, uns bons empregados, outros bons empregos.

Não nos julgamos iluminados, pelo menos tanto quanto os Migueis deste país, mas decidimos avançar para este pequeno texto por acharmos estranho, pouca gente ter manifestado opinião semelhante, pelos meios de comunicação.

So you think you can snitch?



ver:

http://www.sparkagency.pt/

11.01.2011

Homenagem a um grande personagem da História Contemporânea Portuguesa, e um exemplo de como lidar com jornalismo medíocre

Ana Cunhal, entrevistada 5 anos após a morte dele.
Sem gaguejos nem verniz. Vale a pena ler quem não teve oportunidade. Cortesia do DN

Ana Cunhal só falou por duas vezes sobre o pai, ambas ao fim de cinco anos sobre a morte. Quem a conhece retrata-a como bastante rebelde. Após o funeral de Cunhal peregrinou pelos lugares onde o pai viveu, e rumou depois aos EUA.

Cinco anos após a morte do seu pai, como o definiria?
Um ser humano extraordinário e exemplar. Um homem que sacrificou tudo o que tinha ou podia ter tido para construir um mundo mais justo. Altruísta, honesto, íntegro, carinhoso...
Há cinco anos faria o mesmo retrato?
Claro. Porque seria diferente?
Porque um pai vivo causa-nos outra responsabilidade…
Ah, a tal coisa da responsabilidade. Estará a assumir que por ser filha de quem sou tive ou tenho de me comportar de uma certa maneira? O facto é que nunca aceitei esse tipo de "responsabilidade".
Qual a característica que mais apreciava no seu pai?Todas as suas faculdades humanas e intelectuais.
Alguma de que gostasse menos?Não.
Ele escondia muito a personalidade. Conheceu-o a 100%?O que acaba de afirmar é tão absurdo que se torna quase insultuoso. Como é que o simples facto de uma pessoa se defender contra bisbilhotices e indiscrições se traduz em "esconder a personalidade"? Há quem queira saber tudo, como se a vida privada dos outros fosse uma telenovela. O meu pai nunca escondeu a sua personalidade, o que fez foi não deixar certas pessoas meterem o nariz onde não eram chamadas. E teve muita razão. Eu faço a mesma coisa. E estou segura de que muita gente "normal" faz o mesmo.
Se pudesse retocar a biografia do seu pai em que situação o faria?O meu pai não era grande fã de biografias. Sempre se opôs a culto de personalidade ou qualquer outra forma de atenção desmedida. Compreendo-o bem.
Quando é que entendeu que crescia fora do seu país?Quer saber se eu sabia que era portuguesa? Sempre o soube.
Foi difícil crescer fora do país, ou era natural?Naturalíssimo.
Que memórias mais antigas tem dele?
 Férias na praia, partidas de xadrez, muita risota.
Para os portugueses, Cunhal parecia ser tudo menos capaz de fazer rir. Estão enganados?Essa "maior parte dos portugueses" nunca deve ter tido ocasião de ter uma conversa com ele. Porque os outros dirão o contrário.
Ele gostava de desenhar. Fez-lhe alguma história infantil?
Durante os meus anos de infância desenhou-me dezenas e dezenas de giríssimas caricaturas de gatos. Eram inventadas por ele e coloridas a lápis de cores de boa qualidade, daqueles que se diluem como aguarelas se lhes passarmos um pincel molhado por cima. O humor era fantástico, com gatos a patinar ou a tocarem guitarra numa banda de rock. Os gatos tinham uns olhos enormes, muitíssimo expressivos e bigodes a "abanar ao vento".
Ainda em criança, o seu pai separa-se da sua mãe. Foi difícil conviver com a sua ausência?"Presença" não é uma questão de geografia. "Ausência", tão-pouco.
Sentiu falta de ter um pai em casa?
 Casais separados, desde que o queiram, podem sempre inventar maneiras de estarem "presentes" para os filhos. Conheci bastantes filhos de casais que viviam juntos, dos quais o pai, mesmo vivendo em casa, estava muito mais "ausente" que o meu. O meu pai fazia tudo o que podia para estar "presente". Tudo reside na maneira de comunicar o amor que sentimos e em fazê-lo frequentemente. Coisa a que ele se dedicou a 200%.
Sentia o mesmo que os outros filhos de exilados políticos, ou ser filha de Cunhal dificultava ou facilitava o estar fora de Portugal?Não sei como é que os outros filhos de exilados se sentiam.
Ficou feliz por voltar a Portugal?Iria finalmente conhecer o resto da família e conhecer o meu país.
O que mais a marcou no regresso?O frenesim pós-25 de Abril. A minha obstinação em continuar a ser uma pessoa como qualquer outra, num ambiente tão politizado quanto excessivamente curioso e agitado.
Sentiu-se a viver outro exílio pelo protagonismo político do seu pai?Quem viveu em exílio foi o meu pai, não fui eu. Quanto a mim, apesar das circunstâncias fora do comum, tive uma infância que me pareceu perfeitamente normal.
A política interessou-a então?Durante muito pouco tempo, quando fui mordida pelo micróbio dos movimentos estudantis.
Foi fácil conviver com o papel do seu pai no início da revolução?Depende do que isso quer dizer.
Que queria implantar um regime comunista em Portugal.Eu tinha apenas 13 anos em 1974 e fazia o que uma criança daquela idade faz... E isso, obviamente, não inclui política.
Os vossos pensamentos políticos divergiam?Para mim, o meu pai sempre foi antes de mais nada o meu pai, mesmo tendo sido Álvaro Cunhal para o resto do mundo. As nossas conversas não eram debates políticos mas as típicas entre pai e filho.
Era difícil ser conhecida como a filha de Álvaro Cunhal?Tenho muito orgulho no meu pai. Nunca apreciei foi o facto de certas pessoas julgarem que tinham o direito ou o dever de me tratarem de uma forma diferente pelo simples facto de eu ser filha de quem sou.
Qual o livro dele de que mais gosta?A Arte, o Artista e a Sociedade. Um livro espantoso que aconselharia a qualquer apreciador de arte.
O seu pai gostava de pintar, mas a maior parte dos seus quadros são desconhecidos. Porquê?Porque era uma pessoa muito modesta, que pintava pelo gosto de pintar. Se calhar muita gente não sabe que, apesar da sua modéstia e de muitas reticências, acabou por autorizar a publicação de uma colecção de impressões dos seus quadros. Chama-se Projectos - Eu gostaria de saber pintar. Era o que ele costumava dizer: "Eu gostaria de saber pintar."
Tem algum quadro dele em casa?Duvido de que os leitores do DN se importem com o que tenho ou não em casa. Se é para se saber se me deixou os seus quadros, é evidente que sim. E revelo isto só para que não se duvide do seu amor de pai.
Porque foi viver para os EUA?Tem a certeza de que isto não é para uma revista social?!

entrevista no DN Gente online, do dia 12 de Junho.
http://dn.sapo.pt/gente/interior.aspx?content_id=1591061

8.14.2011

Vai para o trabalho (II)

Parte 3

I


Achamos que as massas foram vitimas de uma manipulação ideológica que aproveitou profundamente as nossas características biológicas e psicológicas que nos transformaram em fanáticos agressivos que reagem sempre contra a ideia da possibilidade de um outro mundo, que defendem o carácter sagrado do trabalho, como se este fosse um valor moral, norteador de sucesso e progresso.



A tal servidão é voluntária, tanto quanto é acarinhada.

Para as massas, fora dela, existe o caos, a anarquia, pois a civilização (dizem os ideólogos) só surgiu através do trabalho, e que quanto mais um indivíduo se consumir por completo em trabalho mais ‘longe’ irá a civilização.





Para quem está atento, assiste-se na análise da História a avanços e retrocessos constantes e regulares, no que concerne à evolução social da nossa espécie.

Cada vez mais e pela primeira vez na História, a Humanidade vai-se libertando através da técnica das condições materiais que a condicionavam, apenas para se autocondicionar de novo.



O progresso social retrocede para o sentido das primeiras populações que alimentavam a Inglaterra que assistiu aos primeiros engenhos a vapor.



A bóia que é lançada ao náufrago, ajuda como âncora, pois os milhões no desemprego assistem à inevitabilidade do desregulamento do código laboral, e de todos os avanços conseguidos previamente, tudo para aumentar a empregabilidade e revitalizar a economia, alinhando a mão de obra pelo nível dos desgraçados trabalham a troco de uma taça de arroz.





O cidadão vê-se assim, também, desprotegido laboralmente.

Como reage?



A sua reacção abrange 3 comportamentos mais comuns:



1) abnegação em trabalhar mais e dar o exemplo para que outros façam o mesmo;

2) assume uma identificação osmótica com o seu trabalho;

3) desenvolve uma coerção e hostilidade para com quem não quer ou não pode trabalhar.



O fundamentalismo do trabalho é propagandeado por todos os meios possíveis. As próprias pessoas, ébrias de uma superficial riqueza, não querem voltar atrás. Não querem estar impedidas de trocar de carro de quatro em quatro anos, querem continuar a ter toda a ‘liberdade’ para os consumíveis electrónicos da moda que são disponibilizados a conta gotas por meia dúzia de empresas que institucionalizaram a ‘obsolescência embutida’, que é tomada pelas massas como consequência do uso dos objectos.



Não querem abdicar da Playstation, ou pelo menos do seu progresso regular de versão em versão, mesmo quando dois terços do planeta passa fome, precisamente para que um terço possa ter acesso a estas riquezas superficiais.

O cidadão comum que sonha com um mundo melhor, sonha com playstations para toda a gente e para com a expansão deste universo alternativo a outros, a toda a gente.





A imaginação afogada por uma ideologia popular tecnocrata, não consegue vislumbrar propostas de solução a ter para com os problemas presentes, quanto mais para alternativas futuras. É preocupante quando a própria juventude não quer nem consegue imaginar um mundo futuro diferente.

É geralmente um sintoma característico da embriaguez.



O colapso do trabalho implica necessariamente o colapso da sociedade capitalista.

Não se constituiu até hoje um único movimento de massas, e até o movimento originado em Março, em Portugal, tinha menos que ver com uma reforma radical da sociedade que com uma justa reivindicação salarial de pessoas que se viram despojadas do reconhecimento social que esperavam obter com uma licenciatura.



As reacções existentes à crise, timidamente, (porque pura e simplesmente ninguém sabe o que fazer) lá pretendem uma regulação estatal da sociedade da mercadoria, mas não a sua abolição ou aniquilamento.

Tal ainda é visto como impossível.

Nem que se tenha de implementar uma administração autoritária da crise tal e qual um governo fantoche, implicando já uma concretização de política económica ultraliberal por parte do governo recentemente eleito (!), a partir de promessas de mais trabalho, coercivo e forçado, sob máscaras de impostos mais pesados, e aumento da carga horária sem compensação salarial.



O trabalho é o cadáver que domina os ventos da ‘globalização’ que traíram as suas melhores promessas e que não passam de aragens bafientas. Nunca como hoje a sustentabilidade ecológica do planeta esteve tão em perigo, nem se travaram tantas pequenas guerras, que no somatório de vítimas encoberto pelos meios de comunicação, se assemelham a grandes conflitos à escala global. Encobrem-se os levantamentos de povos como a Revolução Islandesa, e outros, pois tal não seria bom para as sociedades que defendem que isto é o progresso.



A capacidade ou incapacidade de vender a sua força de trabalho é o requisito perante o qual o ser humano se torna marginal ou supérfluo.



Quem não trabalha não come, é o mote moderno.



O trabalho e a sua ideologia dominante, determina os conceitos, os valores morais (quantas vezes não se ouve que fulano é boa pessoa, muito trabalhador, como se fosse isso um valor sobre o seu carácter) e os comportamentos dos indíviduos.

Mesmo os indigentes interiorizam que é melhor ter qualquer trabalho que não ter nenhum, e os que não conseguem nenhum, encontram justificada na sua culpa, a sua condição humana. Ou seja o pobre e o miserável são-no porque não arranjam emprego, assumindo-se o cidadão moderno como o epitáfio de todas as civilizações passadas humanas, é que sempre houve miséria, mas hoje em dia descobrimos que só existem miseráveis, porque não querem ou não podem trabalhar.

O miserável, portanto, merece a sua fortuna e miséria.



As limitações do trabalho, da sua necessidade na vida dos indivíduos e das comunidades que vivem dos serviços é essencialmente um problema subjectivo dos excluídos, de acordo com a natureza delirante da consciência contemporânea.





O trabalho tornou-se obsoleto. Anda-se apenas a moer a rosca, presentemente.



Os gestores, economistas, políticos incompetentes, perante a própria corrupção e ganância, exigem reivindicações exageradas, acusam de falta de disponibilidade e falta de flexibilidade como as causas para o estado desta casa onde não há pão nem razão, e onde todos ralham.



Agarremo-nos todos ao remo do sacrifício, e abnegadamente rememos, não interessa saber para onde, a saída só pode ser a remar, quem não o faz que morra, desde que não viva à nossa custa, fique para trás será castigado darwinianamente por isso.



É na coerção que o homem se torna lobo do homem, na coerção que uns indivíduos fazem sobre outros, generalizada e delirante, sob a batuta de umas pretensas leis do mercado.

O totalitarismo económico, para o qual os olhos das gerações futuras olharão com espanto, legisla bem, quem não se adapta e agarra com unhas e dentes a esta competição incondicional, será punido aos olhos da rentabilidade e deve ter pelo menos a necessidade de obliterar-se pelas próprias mãos para não ser um encargo para outros.



Perante o vazio de ideias, o abandono na abnegação do trabalho torna-se cada vez mais completo, rendido à imagem imediata da separação única dos males presentes, pela redenção que vem apenas pela entrega absoluta ao trabalho futuro.