A ligação entre
intelectuais e população em geral sempre foi fonte de perplexidade
para quem se debruça sobre a cogitação sobre a dinâmica social.
Hegel no seu 'Fragmento de
Sistema' alerta para uma necessidade de unir mitologia e razão para
se obter uma adesão interina de 'coração' a uma racionalidade
inclusiva.
Pese embora a interessante
complexidade de tão altas considerações, o exemplo português
constitui sempre uma espécie de excepção à regra que só a
confirma.
Se no passado os
intelectuais olhavam para a população no seu conservadorismo básico
e titubeante com olhos benéficos que justificavam a estupidez e
indigência com as condições materiais, hoje em dia penso não
errar grosseiramente quando acho que os 'intelectuais' olham para a
restante população como um filho bastardo emigrado olha para a
família campónia.
O ressentimento grassa pois
a classe mais esclarecida, não consegue modificar a classe corrupta
que se apropriou do poder legitimada pela maioria da população.
Cada 'intelectual' acha que
tem solução para os males do mundo, tanto como cada cidadão
anónimo não letrado acha que é esperto o suficiente para saber
como funciona o mundo e que só o engenheiro, o médico, o arquitecto
sabem mais que ele.
A Universidade enquanto
instituição é o melhor que temos, e a nossa única esperança
enquanto sociedade. Representa um certo compromisso com o acto de se
consagrar a vida à auto perfeição e à busca de respostas para o
que quer que nos interroga.
É através do conhecimento
do mundo que se pode partir para a sua transformação. É na
Universidade que se produz e transmite ciência desinteressada,e só
essa pode trazer promessas de liberdade à vida dos homens, pois os
privados nunca irão lutar por uma liberdade que não seja convertida
em divisa.
Como toda e qualquer
instituição humana que implique hierarquia e longevidade no tempo,
também a corrupção (ou cristalização nos dizeres de Hegel) fez
evoluir a Universidade medieval para contextos distantes dos
originais e bem afastados do que a academia professa. A escola
pública tornou-se num gigantesco ATL e a Universidade portuguesa
transformou-se numa fábrica de licenciados destinados a escritórios
e fábricas.
Algures pelo meio deixámos
de ser homens e mulheres.
A academia tornou-se hoje na
salvação e em parte do problema, porque se por um lado precisamos
de todos os portugueses a participar na produção de conhecimento
que sirva para o bem comum, por outro lado a universidade é a
instituição mais reaccionária da sociedade portuguesa.
Quem é o académico?
O académico nasce sem
saber, por alturas do ensino secundário. Confrontado com uma corrida
que parece entrar na recta final, o jovem e a jovem, começam a
imaginar o que será um conceito de felicidade futura e realização
profissional. O próprio 'superior' que aparece a seguir a 'ensino'
dá a ideia de uma possibilidade de pertença a casta distinta, e eis
que os jovens embarcam não na prossecução de uma jornada
prazentosa, mas numa perseguição de carreira onde se podem encaixar
numa sociedade que só recompensa quem para ela se sacrifica.
Assim evidenciam-se duas
características dos académicos contemporâneos, a falta de
humildade e a humilhante subserviência e adesão de 'coração' ao
status quo, esboroando qualquer esperança que possamos ter em ver
nos universitários os percutores de mudança social, falta-lhes
imaginação e vontade, pois são formatados pela recompensa em forma
de carros, casa, consideração social, e reconhecimento pelos pares,
afinal, quem tem a segurança da conformidade não precisa de mais
merda nenhuma.
Os jovens académicos
portugueses são regra geral, pálidos reflexos de monges copistas
medievais, desprovidos da adesão religiosa destes.
Apenas produzem o
conhecimento científico necessário para obter reconhecimento, em
particular dos que escolheram para 'pares', numa traição grosseira
ao espírito polímata que deveria ser uma das fontes possíveis de
alguma humildade. Raros são aqueles que não bocejam ou desvalorizam
o campo de saber alheio, como forma de enaltecer o seu, e uma análise
do funcionamento dos orgãos da função pública portuguesa poderia
facultar verdadeiras novelas para comprovar esta opinião.
A psicóloga cospe sobre o
filósofo, o engenheiro sobre o dramaturgo, o escritor sobre o
arquitecto, e assim onde quer que se entre em competições sobre o
carácter utilitarista de certs ocupações de corpo e espírito.
Mesmo as gerações mais
novas até aos 40 anos vivem na dicotomia entre aquilo que observam,
uma verdadeira fogueira de vaidades, medieval, senhorial,
corporativista, que cinde e enfraquece a 'nação' e o sentimento de
se ter atingido algo, uma posição, uma evolução, uma posição,
uma evolução na vida, para um estado que merece reconhecimento
respeito e notoriedade.
Todos entoam a bom som a
indigência de Portugal, do meio académico, mas exigem que sejam
tratados como professores, ou que os cheques tenham doutor ou doutora
mesmo que o sujeito só seja licenciado.
Dá-se o caso caricato de se
atrapalharem em plena aula com o importante detalhe se a pessoa a
quem orientam a tese de mestrado é colega ou aluna, e eu assisti no
processo de Bolonha a apresentações de orgulhosos estudantes de
pomposos mestrados, que mais não eram que o 5º ano da licenciatura
pré Bolonha.
A seriedade dada ao grau,
como forma de enunciar a capacidade técnica ou científica é
submersa ante a dignidade que se exige na forma de tratamento, aos
demais.
Os departamentos
universitários transbordam de doutores doutorzinhos mestres e
mestrinhos em sintonia de reverência por títulos que só vejo
exemplo comparável no mundo das artes marciais, com a pompa inscrita
em cintos coloridos.
Cada chefe de aldeia tem o
séquito, um microcosmos.
Dele depende financiamento
para mais uns anos de vida dedicada à cópia inventiva, bem como da
intrudução dos iniciados no complexo mundo dos especialistas.
O título, em Portugal nada
tem que ver com uma opção de vida pela tarefa da instrução
própria, tem a ver com a obtenção de posição social.
Tem a ver com o arquétipo
da fidalguia como filho de alguém, por via directa como a cunha ou
indirecta como o 'self made man ou woman' que se esforçaram por
fazer parte do clube. Isto no sentido de que um licenciado é
socialmente visto com olhos mais doces que o calceteiro que sendo
trabalhador braçal não teve coitado cabeça para mais, para a
hercúlea tarefa de acumular 180 créditos bolonheses.
Não interessa o que se sabe
ou como se sabe, interessa fazer o que os outros fazem.
A população que paga o
ensino superior quer dar o melhor aos filhos dando-lhes a hipóteses
que nunca tiveram, de sair do lodo do trabalho mal remunerado, mal
considerado, sujo, braçal repetitivo, contribuindo para o mesmo
sistema discriminatório que em silêncio abominam.
Temos uma geração de
infantes e ninfetas nas universidades portuguesas que vão prosseguir
os estudos como forma de obter aceitação perante os pais e
sociedade, mais que por gosto do que vão fazer, coisa que talvez
nunca descubram.
Assim que se 'formam', pois
até lá são 'deformados', tornam-se naquilo que estudaram,
acérrimos defensores das suas vaidades pessoais ou vazios
espirituais, que verdadeiros amantes do saber enquanto actividade
humana.
Há a desconsideração
latente e submersa entre áreas de saber, por critérios que variam
ao longo do tempo e da empregabilidade, os de letras são uns
tolinhos que estudam coisas que não servem para nada, e os dos
números é que fazem coisas e são calculadoras ambulantes.
Entre instituições de
áreas semelhantes há o preconceito sobre o grau de exigência de
cada curso concorrente, ou a aplicabilidade ao 'mundo do trabalho'.
Portugal, como reconfirmei
com um colega meu, é um país medieval cujas aldeias competem ainda
nas feiras e nos arraiais. As figuras tutelares e místicas do padre,
do morgadio e do doutor, estendeu-se a todos os planos sociais,
aoinvés de se diluir a hierarquização.
A visão unívoca do mundo
após a queda do comunismo criou outra zona de exclusão sujeita ao
mercado.
Lembro ainda os muitos
milhares de mulheres e alguns milhares de homens que correram aos
cursos de letras para acederem a uma carreira docente segura, pois os
cursos 'estavam a dar', e todos se queriam libertar não só dos
trabalhos 'sujos' como aumentar a sua auto estima como 'senhor
professor' ou stôra, mesmo que para isso não tivessem qualquer
vocação, num paralelismo com o que se passa hoje em Medicina.
Portugal, falhou em
tornar-se numa sociedade de conhecimento, permanecendo o que já era
dando ares de ser outra coisa, uma sociedade da aparência e do
privilégio.
Por mais ideias e teorias
que os estrangeirados tragam para o torrão pátrio, de escandinávias
ou canadás, tudo será corrompido pela mentalidade medieva
portuguesa, e parece que a igualdade ou o equilíbrio só é possível
de ser alcançado através da igualdade expressa em números nas
folhas de vencimento. Só assim pode esta população construir os
seus critérios de valor, o que já de si diz algo sobre esta
população.
Os estrangeirados que
crescem em número revelam verdadeiro amargor, através das redes
sociais, sobre o lodaçal bafiento que Portugal efectivamente é.
Mas como é normal, fazem
parte do problema e não da solução. Mas compreende-se o seu
amargor.
O asco pelo povo comum, pela
maioria da população emerge pela traição contínua deste povo a
si mesmo, conjunto de indivíduos básicos e limitados com orgulho
nas suas limitações, indigentes orgulhosos e convictos nas virtudes
cívicas e no apreço pelo semelhante que varia de acordo com a
arrogância desse mesmo semelhante em convencer da sua superioridade.
É portanto natural esta
sobranceria que caracterisa o atavismo de uma população de
gralhas e pavões dedicados ao culto da aparência pois é a
aparência que mais facilidades práticas dá nesta sociedade que
construímos.
Somos um povo de triste
gente da qual eu faço parte.